domingo, 2 de junho de 2013

Capadócia


Arquitetura Vernacular na Capadócia.


               Entende-se por Arquitetura Vernacular aquela que é feita exclusivamente com materiais e recursos do próprio ambiente em que é executada, adquirindo características únicas e inerentes ao sítio e aos fatores culturais predominantes na sociedade em que floresce. Esse tipo de arquitetura, portanto, nasce e se desenvolve no próprio local, livre de influências externas cujo resultado obtido passa a ter caráter local e por vezes até regional.

               É exatamente o que encontramos na belíssima região turca da Capadócia, na Anatólia Central. Lá, várias comunidades se estabeleceram criando cidades inteiras escavando a rocha local, oriunda da enorme atividade vulcânica sofrida a mais de trinta milhões de anos. São diversas as cidades escavadas nos vales, nas encostas e demais formações rochosas criadas pela erosão e muitas delas nos subterrâneos com a função defensiva de servir de esconderijo para uma eventual invasão inimiga. Famosa no mundo inteiro pela originalidade  e pela carga histórica que detém é destino certo para quem quer desfrutar de algo completamente diferente e único. 
                

               Estas formações são o resultado da petrificação das cinzas vulcânicas que cobriram a região (dando origem a uma pedra muito macia denominada de Tufa) e que depois sofreram desgaste com a erosão de ventos e águas. Este desgaste criou uma variedade sem fim de formas que enchem a paisagem e criam uma atmosfera de pura fantasia. A camada de tufa podia ter até cem metros de espessura o que prolongou em muitos milhões de anos o fenômeno natural que ainda hoje caracteriza toda a área. 
               Acima aparece o Mosteiro de Kizlar onde monges viviam e trabalhavam. 

   

              Antes, a localidade de Uçhisar. Essa pequena cidade teve início em seu rochedo, conhecido como "Castelo", e foi ao longo do tempo crescendo em direção à sua base, circundando por completo a antiga cidadela. Hoje, altivo e onipresente, o rochedo perfurado, baliza a área e região que é muito procurada por turistas aos quais recebe com inúmeras pensões e pequenos hotéis de luxo. Desde sua base até seu topo as vistas são magníficas e vão longe.


                Interessante o resultado plástico obtido na obra mostrada na fotografia anterior em que aparecem vários exemplos de como se deu a apropriação dos espaços e das diversas soluções obtidas pelo homem em um sítio, a primeira vista, de difícil de ocupação. As vedações feitas por paredes lisas que aparecem mais acima não interferem em quase nada na forma original do rochedo, diferentemente da que aparece em destaque mais abaixo que possui um grande frontão esculpido e que se apoia em um deque de madeira. Ao lado por trás da bandeira turca uma casa com laje, cimalha e friso que encostada aos rochedos ocupa inteiramente um vão e se apoia em um muro de arrimo que absorve as diferenças de cotas do terreno irregular. Ao fundo e mais acima aparecem ainda um arco ogival e a cobertura de outra moradia com placas de aquecimento solar. O tempo todo aparecem ocupações mais antigas que invadem a rocha, alternadas com obras mais recentes que abandonam o antigo costume e edificam na frente das formações naturais. As novas casas muitas vezes são mistas tendo parte de seu corpo dentro das cavernas e parte fora delas assumindo um caráter mais atual ser perder o encanto da velha tradição.
             Com muita ousadia foram criados ricos e espaçosos ambientes de uso coletivo, com refinada arte decorativa sobre suas robustas estruturas, em total sintonia com a função a que eram submetidos.  Naves de igrejas, bibliotecas, cozinhas e refeitórios e os mais diversos salões de convívio, sobreviveram até os nossos dias para servirem de testemunho da enorme façanha alcançada pela engenharia humana nessa parte da Turquia. 


               Acima o grande salão da biblioteca do conjunto de Selime, onde dentre tantas coisas eram ensinados conceitos de medicina. O liso teto abobadado da caverna, arrematado com uma fileira de colunas que parecem sustentar a série de arcos, é uma grata surpresa para quem nem sequer pode imaginar que tal obra tenha sido executada em um ambiente tão rústico. A acústica é perfeita e a única fonte de luz, proveniente da porta na  parede que não aparece na fotografia é suficiente para iluminar o ambiente. A mancha escura do teto é consequência da queima de velas e lâmpadas.
               




Acima a Biblioteca e abaixo parte da nave central com uma das naves laterais da Catedral.


Detalhes da grande nave da Catedral


               Os pilares na Catedral de Selime alternam o formato cilíndrico com o de prisma quadrangular e suas arestas bem definidas. A base dos arcos permanecem quadradas e formam uma faixa saliente que em conjunto com a faixas de topo das colunas criam um detalhe de sutil beleza e movimento que chamam ainda mais a atenção para a alternância no formato das colunas. A pintura eclesiástica original ainda resiste aos efeitos do tempo e aos danos provocados pelo vandalismo, agora contido.





As pinturas originais ainda resistem ao tempo e podem ser claramente distinguidas.


               Abaixo um salão que possivelmente serviu como sala de aula ou refeitório. Esse espaço é o único que nesse conjunto possui uma frisa voltada para o salão central. Os vestígios da antiga pavimentação já não existem mais, mas é certo que o chão era dotado de uma capa nivelada.


              Em seguida um exemplo de moradia em caverna ainda utilizada pelos locais. Atualmente essa maneira da forma de morar tem sido substituída pelo padrão universal, mas ainda existem aqueles mais tradicionais e resistentes que insistem em manter as tradições passadas de gerações a gerações.   
   

               Pode acontecer de muitos dos ambientes ficarem isolados em uma parte da rocha sem comunicação com o restante da propriedade, fragmentando a casa em diversos conjuntos de cavernas. Assim, nem sempre a rocha permite uma ocupação de acordo com o tamanho da família ou sua necessidade, podendo variar em muito em sua proporção e seu formato. Interessante (na foto anterior) o muro construído para vencer a altura resultante entre a porta de entrada e o nível do solo. Não raro as casas eram acessadas por meio de andaimes, e ou, escadas leves de madeira apoiadas diretamente sobre as paredes externas. Já na foto abaixo a porta se encontra bem ao nível do chão e a janela lateral, vedada por uma grade de duas folhas, ganha um arco abatido, demonstrando a preocupação estética existente e aplicada quando possível. Bem acima do lado direito um pombal. 



               Por entre o belo arco da porta os ambientes de estar e jantar se comunicam e se integram com a cozinha nessa parte da moradia destinada ao diário. Em outras duas cavernas estão os dormitórios e quartos para estoque de suprimentos. Os sanitários ganharam casinhas externas bem distribuídas pelo terreno, assim como as áreas para lavar e secar roupas.


               O mobiliário simples e a inexistência de elementos decorativos fazem a moradia parecer muito impessoal, mas a textura das paredes de pedra revelam a real condição da casa: caverna. É uma linguagem livre dos clichês decorativos que fazem lembrar a teoria da "máquina de morar" de Le Corbusier. Antecipando em muitos anos a teoria do famoso suíço esse tipo de moradia é para quem não tem muito tempo a perder com pequenos detalhes da vida, mas sim com coisas que mantenham a família unida em torno do fogo que aquece as rigorosas noites de muito frio dessa parte da Turquia. O fogo não é nenhuma novidade, mas os confortos da eletricidade e da vida moderna deixam suas marcas nos novos cortes das paredes que infelizmente criam as medonhas linhas brancas.


               A enorme cozinha tem hoje armários do tipo americano e eletrodomésticos modernos. O Piso dessa área molhada já não é o mesmo que o mantido no estar por razões de higiene e praticidade no seu manuseio e ainda que não tenha janelas ou canos para a exaustão se mantém limpa e arejada.


                      Abaixo uma série de fotos tiradas na cidadezinha de Göreme, principal polo turístico da Capadócia. Lá, onde antes as moradias eram feitas exclusivamente com a técnica de (aproveitando-se do fato da grande maciez das rochas vulcânicas da área) cavar a rocha, ampliando as grutas e cavernas naturais, estabelecendo uma forma muito original de utilização do solo pelo homem é que encontramos o museu a céu aberto. Atualmente essas habitações tradicionais ainda são amplamente utilizadas, ainda que a maioria das novas edificações sejam executadas sob a ótica de uma arquitetura padrão e universal, mantendo porém uma técnica que utiliza a mesma pedra, agora cortada em paralelepípedos e deixada crua e aparente em volumes que se sobrepõem uns aos outros. Essas construções contemporâneas procuram em sua maioria manter as antigas casas e prédios religiosos na sua forma original mantendo a ordem e respeitando a paisagem, garantindo a preservação do conjunto histórico e arquitetônico tradicional. 
     

                   A cidade cresceu ao redor dos rochedos mas não apagou o relevo. Manteve as formações naturais com seu devido destaque e não se esqueceu de manter inalterada a escala humana original. A proporção entre maciços construídos e espaços livres é bem equilibrada, oferecendo uma das melhores relações entre moradia e espaço urbano que eu já tenha tido a oportunidade de conhecer. Acolhedora e nada opressiva, a cidadezinha é como sempre foi: encantadora.   


Acima um exemplo da antiga e tradicional forma de ocupação, já com os efeitos da luz artificial.


               Os inúmeros patamares, que surgem com a sobreposição das casas, criam um efeito maravilhoso de movimento e dinamismo potencializado pela mudança de esquadro das paredes e pelos cheios e vazios das mais diversas aberturas. Esse conjunto agradável e harmônico é devido exclusivamente ao fato dessas construções serem feitas com o mesmo material e possuírem o mesmo acabamento. Essa unidade que muito agrada poderia ser totalmente comprometida se as casas tivessem em suas fachadas cores ou tratamentos diferentes. Aqui telhados também não aparecem com exceção de algumas pérgulas ou toldos, sempre muito leves.


               A composição das fachadas mais recentes é feita com critério e capricho, adotando o senso de hierarquia e respeitando ritmos, escalas, eixos e perspectivas, mas sempre de uma forma muito sutil que faz parecer que a coisa se deu de forma bem espontânea, como fôra no passado. Acima é possível ver o jogo de arcos que marca a circulação e a entrada principal do imóvel a partir do portão (aberto) que dá acesso à escada que leva ao patamar de entrada superior.


               Acima das lages ainda é possível ver vários chapéus característicos do lugar. O tom mais escuro dessas pedras marca a parte mais dura e menos suscetível à ocupação. As cavernas são sempre feitas nas partes mais macias das rochas que possuem tom mais claro. 





               Claro exemplo de uma casa que invade o interior de uma caverna e que se expande para fora adotando um estilo convencional de arquitetura. Lindo o efeito conseguido com o maciço de pedra fazendo a cobertura do alpendre. Como essas casas se sujeitam ao formato imposto pela natureza das rochas, suas plantas-baixas são em sua maioria bem livres e por vezes um pouco pobres e confusas. Esse problema vem sendo contornado com a adição de corpos externos que permitem uma reorganização interna dos espaços e o consequente aumento da área construída para absorver as exigências do plano de necessidades. 



               A monocromia impera por todos os cantos da cidade que tem no relevo acidentado o seu grande trunfo urbanístico. É o assentamento desordenado das casas, que vencem as curvas de nível e criam os diversos patamares e múltiplos planos, que confere a magia e beleza do local. É durante a noite com a iluminação artificial (muito bem estudada e colocada a refletir o que há de mais interessante. Os focos luminosos ressaltam detalhes que durante o dia somem sob a farta luz solar que apaga tudo) que a cidade fica ainda mais bonita.


               Esse modo de crescimento urbano em planos inclinados me agrada muito e me faz lembrar de outras cidades encantadoras que já tive a oportunidade de visitar como Tasco, no México, Ouro Preto no Brasil e algumas vilas na Europa. Diferem em suas abordagens de estilo mas se comportam de forma muito parecida quanto à concentração urbana. Costumo brincar dizendo que se as favelas brasileiras fossem pintadas de branco com janelinhas azuis e tivessem buganvílias por todos os lados ficariam iguais às vilas gregas! Agora percebo que falta pouco para parecerem uma vila turca. (risos)


               Os planos dos telhados e lajes, vistos do alto, causam um efeito de unidade no conjunto arquitetônico pela adoção de telhas sem cores muito fortes e com a pavimentação dos terraços com pisos de cores também neutras. A pouca vegetação existente entre as casas e nas ruas, acompanha o contraste estabelecido pelo relevo e pela cobertura vegetal natural da paisagem vista ao fundo.


               Um muro feito com blocos rústicos de pedra recebe um border mais requintado de desenho italiano que faz um belo contraste e dá mais requinte ao espaço urbano. Na maioria dos logradouros de Göreme a paisagem muda muito pouco e sempre se comporta de maneira a repetir a pobre palheta de cores, a pouca vegetação e a quase nenhum detalhe que possa tornar a paisagem menos árida. Apesar desse aspecto árido. a cidade não é em momento algum inóspita ou sisuda. É sim muito agradável e bastante acolhedora.   


               Por fim os blocos da clara pedra utilizada na construção dos edifícios e na maioria de seus muros. Usada quase que exclusivamente por toda a cidade, pode receber um simples tratamento com verniz que mantém suas características de cor e textura ou pode ser aplicada sem nenhum acabamento mantendo sua porosidade natural. A cor clara com poucas nuances faz um belo contraste com as madeiras e gradis tradicionais nessa arquitetura.

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