quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Pisa


               É certo que a cidade portuária de Pisa, terra natal de Galileo Galilei, é muito mais que apenas a torre inclinada. Mas para não fugir à tradição vou começar a falar do seu principal cartão postal e do magnífico conjunto arquitetônico a que pertence.
               O conjunto é o mais famoso representante do estilo Românico na Itália e certamente o mais conhecido do mundo. Infelizmente graças apenas à inclinação da torre. Esse fenômeno da construção civil, que parece desafiar as leis da gravidade, acaba por subestimar por completo a importância e qualidade da arquitetura exibida e financiada pelo dinheiro da então toda poderosa cidade de Pisa.
               É formado por quatro edifícios dispostos em uma área aberta e gramada, conhecida por Piazza Del Duomo ou Campo Dei Miracoli. Os três mais importantes são a igreja ou Duomo (1063-1350), o Batistério (1153-1265) e o Campanário (1174-1271). Este trio de edifícios é formalmente unido pelo desenho repetido e ritmado de suas arcadas sustentadas por uma delgada colunata, além da uniformidade do material empregado: mármore branco com detalhes em mármores acinzentados. Existe ainda um quarto (mais discreto) edifício que abriga o cemitério conhecido como Camposanto de Pisa.  
                Diferentemente de outros países europeus, como a Alemanha, por exemplo, que unem em uma mesma edificação todos os componentes das tradições e cultos religiosos, a Itália tende a separá-los em diversas estruturas. Pisa é o exemplo mais claro e emblemático desse jeito italiano de construir na época da Alta Idade Média. O típico traçado italiano de um conjunto arquitetônico sacro desse período é de uma série de construções independentes entre si. Temos então a separação das funções em casas distintas: surge a igreja dominando o cenário ao centro do partido e os corpos do batistério e do campanário dispostos cada qual em uma das pontas do templo.
              O Batistério de Pisa é levantado a partir de uma planta concêntrica e fica bem na frente da igreja com sua porta alinhada com a porta central do edifício maior. Já a torre dos sinos é levemente deslocada para uma das laterais do Duomo que se revela muito característico.
               Na igreja prevalecem as formas simples e a fachada com empena triangular ressaltando o simples telhado de duas águas, muito mais alto que os dois outros telhados laterais, abusa da reflexão da luz sobre suas paredes de mármore branco. 

               Acima uma visão da fachada oeste da catedral tendo a torre sineira inclinada ao fundo. A fachada, muito típica do Românico Italiano é totalmente chapada e revela as mudanças de níveis do volume edificado e ressalta a inclinação das águas dos dois telhados laterais e do telhado principal da nave. O tratamento decorativo dado para esta fachada baseia-se nos quatro níveis de colunatas justapostos e sobrepostos acima da sutil arcada da faixa inferior, mais alta e dotada de três portas. Estas colunas inventam um rendilhado que acaba por abusar do efeito de luz e sombra, criando uma segunda pele que confere ao edifício uma leveza que contrapõe a técnica construtiva dos séculos onze e doze. Esse padrão agradou tanto que passou a ser imitado em toda a Europa.


               As altas pilastras encimadas pelos grandes arcos plenos da primeira seção da fachada (mais próxima ao chão), não são meramente decorativas e expõem sem mistérios a estrutura do prédio. São, portanto, elementos estruturas característicos desse estilo. Esse jogo de arcos e pilares tornou desnecessária uma parede compacta e maciça para absorver uma carga constante. Assim foi possível a utilização de tijolos para criar a estrutura portante de alvenaria: recurso muito difundido até o fim do período gótico.
               De forma distinta as loggias superiores assumem uma função mais decorativa que estrutural. Essas três galerias de colunas, no entanto, ajudam a diminuir a grossura da parede externa dessa fachada e consequentemente seu peso. Suas pequeninas e escassas janelas seguem os ditames da ideologia e da técnica da época: interiores propositadamente pouco iluminados. A idéia da classe eclesiástica era prover o recinto com uma luz discreta e bastante difusa para auxiliar no culto e na catequese. Outro fator determinante para esse estilo arquitetônico era de caráter bélico: herdada das épocas anteriores, a idéia de um prédio com paredes largas e janelas pequenas levava e crer que cumpria com as exigências de segurança e resistência à ação de possíveis inimigos. Nessa época a Itália não era unificada e as autônomas cidades de seu território atual disputavam entre si pelo domínio de suas regiões. Pisa em particular tinha como rivais as cidades de Luca e de Florença.


               Acima um pormenor dos desenhos formados pelos painéis de mármore de diversas tonalidades. Estes trabalhos feitos de mármore dispostos de forma geométrica, que tiram partido dos baixos relevos, completam a decoração característica da fachada, também presente em outras estruturas sacras do mesmo período espalhadas pela cidade. No detalhe à direita, vemos uma coluna com decoração mais elaborada sustentando uma figura animal que olha em direção ao chão com leve inclinação da cabeça para o lado. Esta coluna é uma do par que emoldura a porta de entrada principal do templo, portanto, com hierarquia superior às demais, motivo pelo qual ostenta elaborada decoração. É possível perceber também, que sobre esta porta existe um painel policromado, executado sobre a superfície terminada da parede que exibe um desenho mais elaborado, bem diferente da decoração de pedras que denotam a maneira como a parede foi erguida.


               O Batistério. Edificado entre os anos de 1153 e 1265 foi projetado por Dioti Salvi que elaborou um sistema inovador para a sustentação de seu telhado redondo. Esta complexa (para a época) cobertura que acompanha o formato do edifício e termina com um cone bem pronunciado, é suportada por uma estrutura de colunas internas que ajudam no sistema estrutural. Este cone puxa o volume para cima e acentua as nervuras do prédio. Interessante a mudança das telhas que dividem a cobertura em duas, dando ao Batistério duas fachadas distintas não demarcadas pelo desenho da elevação.
               Ao fundo, em segundo plano, aparece a antiga muralha da cidade que cerca parte do conjunto.


               No Batistério apenas a arcada inferior é do estilo Românico. As duas faixas superiores já adotam uma linguagem gótica mais refinada e elaborada. É bom lembrar que o Românico manifesta-se entre os anos de 1030 e 1200 e o Gótico surge a partir de 1140 indo até os anos de 1500. Após essa data toda manifestação gótica é considerada tardia, como por exemplo, o Manuelino Português, financiado pelas descobertas marítimas e repleto de símbolos náuticos, como os magníficos entalhes de cordas.


                A torre vista de baixo e de bem perto revela suas grossas paredes com aberturas muito pequenas. A janela da torre mostra claramente o tipo adotado que é classificado como janela de voamento. Este tipo de janela constitui-se basicamente de uma fresta  que vai se alargando leve e progressivamente para o interior ou exterior. Na torre a janela é de voamento simples, quase como uma seteira. Quando a janela inicia mais larga, afina no meio da parede e volta a alargar é chamada de janela de voamento duplo.
               O estilo se adaptou aos parcos recursos construtivos da época que impediam o surgimento de grandes vãos, ainda mais em estruturas altas e delgadas.  Os desenhos de mármore claro e escuro e a inserção de elementos quadrangulares entre os arcos de feitios semicirculares são características bem marcantes aqui em Pisa. As faixas horizontais são típicas das construções da Itália central e principalmente da região da Toscana. Aqui elas aparecem bem marcadas e se repetem no corpo da igreja e do batistério.


               A torre está desalinhada em cerca de quatro metros desde o topo até a base. Depois de anos interditada para a visitação pública, foi reaberta após uma moderna intervenção de engenharia que solidificou o solo sob a base da estrutura e cessou o processo de afundamento que ameaçava ruir a torre tombada pelo patrimônio histórico e cultural da UNESCO. O ritmo da inclinação girava em torno de um minuto de grau por década e caminhava para o colapso e conseqüente desmoronamento. Esse afundamento que causou a famosa inclinação foi notado pela primeira vez durante a construção do campanário. Para tentar contrabalançar e cessar o efeito negativo da falta de prumo os construtores fizeram os dois últimos andares em forma de cunha.
               De acordo com o entendimento técnico atual, a área da base da torre é considerada pequena para sua altura. Esse fato pode ter sido o responsável por gerar cargas excessivas e concentradas sobre suas fundações. Essas cargas são bem superiores às de outras torres da mesma época e excessivas se comparadas com as construções tradicionais.
               Uma curiosidade: em determinado momento, ao subir a escada helicoidal que leva ao topo, apesar de estar vencendo os degraus, a sensação é de estar andando no plano.


               A fotografia acima nos revela várias coisas. Em primeiro lugar é pertinente afirmar que a arcada listrada que alterna dois tons de mármore, do oitavo e último piso, sofre clara influência da arquitetura islâmica. Em segundo, é possível a partir das pessoas junto ao guarda-corpo desse mesmo piso, estabelecer um paralelo de medidas e perceber que a torre é mais alta do que parece. Em terceiro, que as paredes do andar recuado do topo (sino-câmara) são menos espessas que as dos andares inferiores. As paredes, muito grossas, possuem cerca de quatro metros de espessura na base e aproximadamente dois na parte mais alta. Em quarto, pode-se perceber que é livre a visão de céu por entre as arcadas, deixando bem claro que na área destinada à colocação dos sinos não há cobertura no centro.


               O Duomo tem planta cruciforme (em forma de cruz latina) ampliada a partir da original que era basicamente retangular. Com o passar dos anos foi sendo reformada e foi ganhando contornos mais claros desse estilo de implantação.
               Seus transéptos bem demarcados foram esticados e por fim dotados de absides. A abside nada mais é que o volume protuberante situado na cabeceira da nave, como remate do corpo do templo onde fica instalado o altar mor. Geralmente projetada de forma semicircular e coberta por uma semi-cúpula com formato aproximado de concha. Pode, porém, ser edificada com outros formatos e pode também ser feita aos pares ou em múltiplos. Nessa igreja elas aparecem tanto na nave principal (maior e em destaque na fotografia) como nos braços dos transéptos.
               A cúpula oval datada de 1090, executada em tijolo e pedra, parte de uma base sextavada e assume contornos de influência islâmica.
               


               Camposanto de Pisa: uma bela vista do núcleo do cemitério, com seu alongado pátio interno que lembra muito um claustro.

               A cúpula ao fundo do retangular espaço aberto é da sua pequena capela. Suas aberturas ainda apresentam o arco de volta perfeita (arco pleno) característico de todo o conjunto sacro analisado, mas ganham um trabalho rendilhado em pedra muito típico do estilo Gótico Primitivo. A Itália foi um país que não teve um desenvolvimento do estilo Gótico tão forte como os que são encontrados na França, Inglaterra e Alemanha. Comparada a esses países sua produção arquitetônica pode ser considerada tímida o que proporcionou uma ampliação temporal da influência do anterior Românico. Já nos prédios seculares ou laicos a linguagem gótica foi aceita com mais facilidade e requinte e com menos conservadorismo, como por exemplo, o Palácio dos Doges de Veneza.

               Embora tenhamos nesse conjunto de Pisa um extraordinário exemplo do Românico a produção de edifícios desse estilo em solo italiano também não faz frente aos demais países da Europa Ocidental.

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