sexta-feira, 14 de abril de 2023

Vitrais de Dom Bosco


 VITRAIS DO SANTUÁRIO SÃO JOÃO BOSCO

BRASÍLIA


                    Tudo se inicia com um profético sonho do padre católico italiano, Giovanni Melchior Bosco, pelo qual preconizou o surgimento de uma cidade entre os paralelos 15 e 20 que abrangem o planalto central brasileiro. Nesse sonho, como consta em sua biografia, ele teria percorrido o continente sul-americano de norte à sul, testemunhando suas culturas e suas riquezas; em determinado ponto do enorme registro com escrita enigmática e fantasiosa ele descreve o surgimento de uma cidade que coincide com a localização da Capital brasileiraApesar dos registros não especificarem o exato local dentro dessa faixa territorial não restam dúvidas, pelo teor dos relatos e magnitude das visões do padre, de que se trata de Brasília. O que reforça ainda mais a tese de que o sonho descreve o surgimento da Capital Federal, é a chegada dos primeiros Salesianos ao Brasil, em data pouco anterior ao fato.

                      É certo que para os mais céticos, toda essa história de sonho é tão fantasiosa como o próprio sonho em si. Ainda persistem dúvidas se realmente foi um sonho, uma premonição ou ainda uma visão. O fato é que a teoria difundida pela vertente religiosa dominante no país dos anos 50 foi incorporada para ajudar a justificar a mudança da sede do poder, corajosamente efetivada por Juscelino, para o longínquo e quente Goiás. Não obstante, a cidade se ergueu no Cerrado e fortificou a tese dos estudiosos da vida de Bosco. E, como não poderia ser diferente, nela foi erguida a Igreja modernista que possui um dos conjuntos de vitrais mais espetaculares da arquitetura moderna em território sul-americano. Se o italiano em seu sonho tivesse visto as imagens dos vitrais, teria certamente achado que não se tratava de nenhum plano terrestre e sim das portas do próprio Céu. 


                    Lindo projeto em concreto aparente que exibe a monocromia tão típica dos edifícios modernistas contemporâneos brasileiros da segunda metade do século vinte e que encanta o visitante com seu interior repleto de matizes de azuis e roxos. O volume rigidamente quadrado brinca com os vazados muito delgados da colunata que forma um dos mais belos conjuntos de arcos da Capital Federal. Acima deles uma larga platibanda esconde completamente o telhado, de estrutura metálica, limpando a linha de topo do prédio. Nem a cruz se atreve a romper essa linha conceitual tão forte, sendo introduzida numa lateral do primeiro pilar de maneira inteligente e muito rica plasticamente. 


                O problema desse edifício é que fica muito escondido na paisagem da cidade. Deveria ter mais destaque mas, mesmo assim, goza de grande notoriedade. Por trás da cruz o único arco que não recebe vitral. 



                Por dentro o mesmo desenho da fachada se repete, porém com um senso de conjunto ainda maior. As quatro fachadas se unem num espaço quadrangular de quarenta por quarenta metros, com seus lados quase idênticos. As delgadas colunas, com coroamento ogival, originam o jogo de plissados do magnífico rebaixamento do teto, que tapa a estrutura de sua cobertura, elaborado a partir de um sistema de treliças. Essas colunas alcançam cerca de dezesseis metros de altura e sustentam uma cinta de concreto armado que rodeia toda a estrutura. Tudo leva nossos olhares para o alto, tal qual uma catedral medieval. O efeito de confete dos vidros coloridos é bastante peculiar e de uma potência tremenda, contrastando com a rigidez da estrutura e com a frieza dos acabamentos da arquitetura antes deles. Certamente que um foi feito para o outro pois a estrutura é o que é por causa do complemento lúdico e etéreo das pastas de vidro, assim como, os vidros não teriam tanta importância se não tivessem encontrado um prédio que elegantemente deixa o protagonismo para as matizes celestes.


                A face plissada é feita com chapas de zinco com um jateamento de papel que ilude o observador imprimindo uma sensação de maior robustez do material. Esse tratamento diferente do papel também elimina suas linhas de junção, dando ao plano uma aparência de concreto aparente e uma impressão que fôra feito de uma só vez utilizando uma única forma. O efeito visual é mesmo de grande impacto e nos faz entender que se trata de uma estrutura extremamente pesada, quando na verdade é bastante leve. 

                    

                   As pequenas peças se amontoam aleatoriamente num frenético sobrepor de 12 tons de azul e pontos brilhantes de branco. Dependendo da hora e da estação do ano, por causa da inclinação da luz solar, o interior se enche de diferentes azuis e por isso reza a lenda, que uma noiva ao celebrar seu casamento na igreja, vai mudando de cores a medida em que as horas vão passando tendo sobre seu vestido os reflexos provenientes das tantas janelas. Ao final já com a iluminação artificial ela deixa o templo completamente branca. Se isso realmente acontece eu não saberia dizer mas, penso que seria uma interessante experiência ver isso na prática. 

                    Com ou sem a "camaleônica" nubente a igreja fala por si só e encanta qualquer um que nela entre.


                        Para marcar os quatro cantos o artista mudou a cor dos vidros, procurando um tom mais quente que dialogasse com o azul dominante, enfatizando as dobras da forma quadrada. Uma opção inteligente e de certo modo desconcertante porque quebra com a lógica da unidade que norteia todo o projeto. Penso que é um detalhe bonito que causa surpresa pois não se faz notar imediatamente. Há mesmo um espanto quando a pessoa descobre que na mudança dos planos o vitral torna-se púrpura. Nesses campos róseos não há o fechamento ogival do topo porque é justo onde o prédio tem suas quinas que separam os quatro conjuntos de colunatas das fachadas.


                      São mais de dois mil metros quadrados de vitrais confeccionados em São Paulo pelo artista belga Hubert Van Doorne a pedido do arquiteto brasileiro Cláudio Naves que assina o projeto. 


                        Conforme o ângulo o cruzeiro de cedro esculpido na cidade catarinense de Treze Tílias, parece fundir-se com uma das oitenta colunas da estrutura. Talhada em uma única peça de madeira por Gotfredo Traller tem oito metros de altura e mais de quatro metros de envergadura. Uma belíssima obra de arte elevada atrás do incrível altar confeccionado com um bloco de mármore rosa de desconcertantes dez toneladas.  


                    O grande lustre de cristal pende do exato centro do teto, evidenciando o formato de cubo e a rígida simetria da construção. Uma figura geométrica que lembra uma cruz, brota da união de todas as vigas que nascem nos pilares e rumam para cerne do conjunto. Com isso o teto subdivide-se em quatro idênticos quadrantes.  Esse maciço no rebaixo do teto serve de campo para a fixação dessa gigante luminária, com mais de três metros de altura, que por ter um desenho escalonado parece ter sido desenhada para esse local. São espantosas três toneladas de vidro distribuídas em quatro linhas de diferentes circunferências onde a maior alcança cinco metros de diâmetro.

                    O lustre, formado por um número superior à sete mil peças de vidro, desconsidera solenemente o altar e ilumina o meio da igreja conferindo maior importância aos fiéis, tal qual a Catedral de Brasília, porém de forma elegante e bem democrática. Ele chama a atenção às equidistâncias de cada membro da igreja, funcionando como se fosse o marco zero do ambiente. Visualmente o espaço se distribui de forma radial apesar do paralelismo dos eixos. 

                    O que chama a atenção para o altar é o modo como se distribui o lay-out do salão e um pequeno desnível do piso vencido por um largo lance de seis degraus. Das portas metálicas da fachada principal parte uma circulação que vai direto ao cruzeiro, coberta por uma longa passadeira vermelha que divide o templo entre direita e esquerda. De cada lado um grupo de mesmo número de bancos orientados para o altar nos dizem onde é a frente e onde são os fundos. Nada mais! Nada mais marca hierarquia. Nada mais marca setorização. Nada mais altera a ideia de lados iguais. 



Eu sentado no chão de mármore branco tendo os reflexos dos vidros azuis projetados sobre mim.
E abaixo as magníficas portas de bronze com assinatura de Gianfrancesco Cerri.


                        São ao todo doze portas duplas divididas em três conjuntos de quatro, resultando em 24 peças que contam parte da vida do padroeira da cidade. A única fachada que não ganha tais portas é obviamente a fachada onde se encontra o altar e a principal é a da fotografia acima. O único problema formal aí existente é que o alinhamento do corredor central, cuja passadeira vermelha aparece na fotografia, dá num pilar e não num vão de porta. Se fossem em número ímpar esse problema não existiria mas o número par foi imposto pela simetria da fachada composta por vinte colunas.

                        Bem, aí está mais um lugar a ser admirado. Apresento a quem não o conhece desejando que possa visitá-lo um dia.