quinta-feira, 15 de dezembro de 2022

MUBE

 

Museu Brasileiro da Escultura e Ecologia

 MUBE    

                Memória da minha juventude e da minha época de estudante, esse volume baixo, longo e aparentemente sem janelas, de uma impressionantemente proposta "avant-garde", sempre me causou curiosidade quando passava pela Avenida Europa! O tempo passou e o edifício se mantém muito atraente desfrutando de suas originalidade e qualidade arquitetônica. Para ele o passar dos anos só contribui com sua majestade.

Eu, na explanada inferior, com a entrada principal ao fundo.

        Exibindo a assinatura de Paulo Mendes da Rocha, o prédio do MUBE é sem sombra de dúvidas um dos mais belos edifícios que abrigam museus em todo o mundo. É também a melhor síntese da arquitetura modernista paulistana do século passado. Eu diria que é a "cara de São Paulo" da segunda metade do século vinte. Sim, com suas indefectíveis paredes e demais estruturas em concreto aparente, seus fechamentos em grandes panos de vidro, sua extensa pavimentação externa em petit pavé (pedra portuguesa) nas áreas abertas em contraposição com o cimento alisado que domina os interiores e principalmente seu enorme vão livre! Vãos livres são mesmo a tônica desse audacioso e impressionante projeto.

        Andando por ele vemos a razão pela qual o arquiteto foi orgulhosamente laureado com o Prêmio Pritzker de Arquitetura em 2006: mais que merecido!                

        Localizado em uma das principais esquinas da área mais valorizada da Capital Paulista, em meio à mansões dos mais variados estilos, faz lembrar ao eclético conjunto arquitetônico (de modelos importados) qual a verdadeira essência da arquitetura brasileira. Faz isso com maestria e de forma sutil e educada. Não se impõem à nada e ergue-se discretamente como uma poesia concreta rodeado de esculturas e refletido num magnífico espelho d'água. 



O espelho, formado pelo lago, dobrando as imagens das esculturas.


                Segundo seu autor o museu deveria ser visto e entendido como um amplo e aberto jardim dotado de uma generosa sombra sobre um anfiteatro ao ar livre. Partindo desse pressuposto assim se dá todo o desenvolvimento formal do projeto que resulta numa estrutura baixa e longilínea determinada por uma enorme cobertura retangular apoiada em apenas duas grandes paredes em suas extremidades. Essa espécie de "mesa" abriga, portanto, um grande espaço aberto em cujo meio se destaca um anfiteatro de linhas modernas com vista para o jardim de esculturas. É um espaço generoso e de uma beleza sem par. 



Acima uma vista do anfiteatro e a perspectiva do grande vão livre.
Abaixo, em detalhe, a escadaria que serve de arquibancada.

         

        Dividido em dois pisos (aproveitando o declive natural do terreno que resulta numa diferença de cotas entre a avenida Europa e rua Alemanha que chega à 4m (quatro metros), o projeto dota a instituição de dois espaços completamente distintos e muito bem aproveitados pelo acervo exposto. Trata-se de um parcialmente enterrado no lote em contraposição à outro inteiramente livre, alinhado pela cota mais alta das curvas de nível.  Assim o piso inferior, fechado e introspectivo, contrapõe-se ao piso superior que assume uma identidade completamente distinta comportando-se tal qual uma grande praça aberta para a cidade. Essa praça ganha ainda maior flexibilidade de opções ao incorporar a grande laje de cobertura e o espelho d'água. Com esses dois planos de linguagem bem contrapostas, a curadoria amplia suas possibilidades e pode tanto exibir esculturas em seu interior como em seu exterior.  A versatilidade que o projeto oferece pode também fazer com que as mostras de arte ganhem outras proporções aproveitando o espaço aberto ao céu, explorando as manifestações e fenômenos naturais, pelos artistas convidados exibindo obras estáticas, cinéticas ou instalações de qualquer natureza. Um local onde pode-se por exemplo brincar com o fogo e a água, com o vento e o sol, com grupos dos mais diversos tamanhos ou apenas com um único indivíduo. 

        Temos então, um edifício que nos oferece duas formas distintas de interagir com a arte e com a cidade com um roteiro que mesmo passando do aberto para o fechado não nos causa nenhuma ruptura visual ou impacto sentimental. A circulação se dá de forma agradável, confortável e amistosa.



        Grandioso e ao mesmo tempo acolhedor, tira de suas linhas rigidamente retilíneas seu maior trunfo: a leveza! Como um material tão áspero e bruto, que é o betão armado aparente, pode compor uma estrutura tão elegante e fluída? A resposta para essa pergunta está na corajosa estrutura protendida que vence inacreditáveis sessenta metros de pura liberdade!

        Sua arquitetura, que segue a Escola Paulista, tira proveito dos materiais aparentes para introduzir uma ideia de simplicidade, onde não cabem muitos detalhes ou qualquer tipo de ornamentação, resultando numa linguagem muito apropriada para um espaço de exposição.

     Concebido e erguido nos finais da década de oitenta insiste na linguagem áspera e crua que bebe na escola brutalista europeia, muito ao gosto dos arquitetos dessa época, solidificando a linha projetual de um grupo paulistano de vasta cultura e muito elitizado. Essa opção pelo estilo limpo de qualquer afetação ou exageros, no qual a estrutura torna-se protagonista e as formas arquitetônicas atingem seu ápice, mostrou-se fundamental para o sucesso do projeto. Aqui, onde a forma tem seu valor explicitado, a maneira como funciona e se comporta é também ressaltada. O cálculo estrutural sofisticado e as técnicas construtivas adotadas tornam-se parceiros da arquitetura na admiração do observador: o prédio por si só já é uma escultura.  



Acima, uma vista de parte dos jardins superiores com o museu ao fundo. 
Não acredito que os desenhos de Burle Marx tenham sido executados.


        Mendes da Rocha aproveita o declive do terreno e pouco meche na topografia, contudo, entende bem o programa de necessidades e sabe extrair o máximo de aproveitamento com sua proposta de um museu dividido entre os usos interno e externo. Tudo é simples, tudo é óbvio, tudo é prático. A própria circulação entre as partes é descomplicada e rápida a ponto de passar a errônea impressão de que o prédio é menor do que realmente o é.
        Sua entrada principal dá-se em uma das duas únicas faces do piso inferior que tem contato com o exterior. Por um pequeno túnel de concreto aparente, imediatamente após um grande largo coberto pela projeção da grande cobertura (em razão de um recuo proporcionado pelo recorte da praça seca superior), o acesso ao interior do conjunto fica óbvio, apesar de se manter discretamente posicionado. Nada de movimento de planos, modificações de pavimentação, desenhos muralistas, mobiliário, floreiras... nada!!! O mais limpo e objetivo possível! Limpo o bastante para cumprir com seu objetivo: receber esculturas.



O piso externo em pedra portuguesa.


Dois ângulos para entender o túnel de entrada.


Na entrada uma grande explanada para servir
 de espaço de exposição. Bárbaro!
 

        Seu interior quase se resume ao grande salão de exposições com piso liso, paredes inteiramente brancas, teto em grelha metálica e distribuição completamente aberta numa planta em formato de "L". Ao fim do túnel de  entrada surge uma espécie de hall aberto onde já se descortina todo o seu interior. De um lado, uma pequena saleta de apresentação do acervo em exposição e alguns espaços técnicos com vista para um pano de vidro colado ao espelho d'água lateral (encostado num muro de arrimo), por onde entra um pouco de luz natural.  Do outro lado o vaso salão rebaixado. Nesse momento surge o único elemento arquitetônico de destaque: uma belíssima escada que liga os dois planos e leva ao ponto mais baixo. Depois disso somente a àrea de mostras que segue rumo à saída por uma impactante e inusitada rampa. Isso mesmo, uma rampa no interior do espaço de exposição! Nada mais inusitado e brilhante! Mais uma das possibilidades que se abrem para a curadoria inventar ou propor. Vencida a larguíssima rampa têm-se um pouquinho mais do salão (agora com um pé-direito bem menor) e por fim, encontra-se imediatamente ao lado da saída, a entrada para o auditório do prédio, sanitários, acessos à cafeteria e o exterior do conjunto. A essa altura a vontade é fazer o circuito mais uma vez!  







quinta-feira, 28 de julho de 2022

Place du Petit Sablon


PLACE DU PETIT SABLON

Bruxelas



                Localizada no centro antigo da capital da Bélgica, essa adorável pracinha cercada, é um dos mais agradáveis recantos da cidade. Um oásis de tranquilidade em meio ao movimentado  vai e vem da sede da União Europeia. Localizada numa região levemente inclinada conta, tão somente, com cerca de três mil metros quadrados de área mas, o que lhe falta de tamanho lhe sobra de charme e beleza.

                Ligando duas ruas, uma das quais de intenso tráfego de veículos e pedestres, apresenta uma solução muito inteligente privilegiando a fácil circulação dos pedestres que por ela cortam caminho. Tem o nível da rua de trás bem mais alto que o da rua da frente, fazendo com que sua porção traseira se eleve e crie uma espécie de fundo decorado, já que teve seu campo quase todo nivelado à cota da avenida principal do lado oposto. Composta basicamente por grandes canteiros decorados com vegetação de pequeno e médio portes, circundados por caminhos de terra que convergem para um lago circular, mantém-se francamente aberta ao céu, o que faz dela uma paisagem maravilhosa nos dia ensolarados. Seu maior destaque é um pedestal que suporta uma escultura de bronze de dois importantes personagens da história belga de onde jorram filetes de água para o lago à que margeia.

                A entrada se dá por três portões que fazem uma triangulação entre si; um praticamente escondido atrás da escultura principal na calçada da rua secundária e um em cada esquina da frente situados na avenida principal. Ao entrar pelo isolado portão atrás da fonte, descortina-se uma perspectiva da praça abaixo, vislumbrando seus canteiros precisamente podados (com seus miolos lindamente coloridos pelas flores de época) tendo em segundo plano a movimentada avenida e a Igreja neogótica de Notre Dame du Sablon. Já ao entrar por qualquer um dos dois portões frontais a paisagem muda completamente, pois o que se vê é o grande pedestal com a escultura de bronze sobre a fonte, tendo como pano de fundo uma parede verde circular   que tapa quase que completamente os edifícios da redondeza. Parece que não se está na cidade. Duas maneiras distintas de ver a mesma praça.

                Tais portões vazam uma bela cerca de grade forjada, entremeada por quarenta e oito pilares de desenho neogótico. Cada pilar sustenta uma escultura de bronze de um homem simbolizando cada qual uma das diversas históricas corporações de ofício medievais da cidade. Ali estão presentes o relojoeiro, o pedreiro, o armeiro, o chapeleiro, o sapateiro, o açougueiro, o estucador, o peixeiro, o talhador de ardósia, o cesteiro e assim por diante. Todos de costas para o interior ajardinado montando guarda de frente para a cidade. Seus pilares não são iguais entre si, exibindo diferentes desenhos que combinam com o estilo da igreja do outro lado da avenida. As grades, por sua vez, também alternam diferentes padrões entre um pilar e outro, mantendo a harmonia pelo cuidadoso trabalho de proporção e equilíbrio entre seus desenhos. 

     


Acima a planta baixa da praça com seus sete canteiros e fonte desaguando no lago circular.
 O traçado é claramente renascentista francês. (ilustração colhida na internet)



O portão solitário da rua de cima
 com a vista da parte de trás da escultura principal


Acima um dos dois braços curvos de acesso entre a parte alta e parte baixa da pracinha
 com suas 5 esculturas de personalidades do humanismo belga.



                Na alta e côncava parede de cerca viva, que veda a rua de trás, estão simetricamente colocadas dez esculturas de personagens do humanismo belga. Cinco para cada lado do portão central, envoltas pelo primoroso trabalho de poda, margeando duas, também simétricas rampas circulares de piso arenoso (sablon), que por sua vez também margeiam duas escadas que acompanham o desenho radial. Essa composição cria duas "asas" de circulação que partem de um ponto central e contornam a meia esfera do espelho d'água, voltando a se encontrar a medida que fecham a circunferência.
               As escadas e suas pequenas balaustradas são trabalhadas em  arenito claro, combinando com o grande pedestal mas, os caminhos de pedestres são todos de areia onde estão dispostos alguns bancos de ferro e madeira. 
                    Os corrimãos, de ambas as escadas, combinam com as grades externas, postes, luminárias e portões, sendo dessa forma, executados em robusto gradil decorado e pintado de preto. 
                    As árvores de grande porte (dentre elas alguns Plátanos) foram todas plantadas na linha periférica, proporcionando farta luz natural em toda a praça e agradáveis sombras em seus limites, dando guarida às esculturas da cerca. Esse recurso ajuda em muito a dar para o local aquele ar de isolamento em relação ao tecido urbano e permite o desenho formal de canteiros à moda francesa do início do século XV.



                Acima uma imagem colhida na internet tirada com uma grande ocular que mostra o espelho d'água abaixo do monumento principal da praça, cujo pedestal também funciona como fonte. Esse conjunto escultórico faz referência ao turbulento período em que a cidade ficou sob o domínio do ramo espanhol da da família dos Habsburgos. Nesse tempo a Bélgica fazia parte (junto com Luxemburgo, parte da França e parte da Holanda) dos Países Baixos Espanhóis, dominados e tiranizados pelo rei Espanhol Phillipe II, filho do Sacro Imperador Romano-Germânico Carlos V.



 Em destaque a figura de dois condes locais, mártires e símbolos da luta contra a repressão, por terem sido decapitados pelos espanhóis em 05 de junho de 1568 (primeiro ano da Guerra dos 80 Anos).


Sobre o pedestal com linhas neogóticas figuram Egmont e Hornes.




Na placa dourada os nomes dos mártires da pátria homenageados
na fonte ao centro do paisagismo:
Conde Hegmont e Conde Hornes.


Atrás de mim algumas das esculturas dos 45 homenzinhos 
que representam as Guildas Medievais.




Nessa foto é possível ver a diferença nos desenhos dos pilares. 


 
Eu com a vista da Igreja de Notre Dame du Sablon.


                Essa igreja em estilo Gótico Tardio, que na Bélgica ganha o nome de Gótico Brabantino, é a mais notória edificação da área conhecida como Sablon (o nome deriva de um antigo mangue que dominava a área). Ela separa física e visualmente as duas e bem diferentes praças conhecidas como A Place Du Petit Sablon e a Place Du Grand Sablon. A pequena, reservada e cercada pracinha, de que tratamos nesse post fica do seu lado direito, na parte alta da topografia do local, enquanto a grande área do Grand Sablon, completamente aberta e rodeada por estabelecimentos comerciais, fica do lado esquerdo e na porção mais baixa do relevo.  
                


Acima uma amostra dos belíssimos vitrais da igreja.
Abaixo o púlpito em madeira em estilo barroco que data de 1697.


                
                Bruxelas é uma capital surpreendentemente encantadora que vai muito além de sua Grand Place (considerada a mais bela praça do planeta). Vale muito a pena gastar mais tempo andando pela cidade que, além de muito segura, é muito animada e cosmopolita. Rica em história e patrimônio, guarda um acervo art nouveau de causar inveja e conta com muitos painéis de street art espalhados pelos diversos bairros. Terra natal de Tin Tin, do Atomium, dos mariscos com fritas, da melhor Cambraia de Linho, do Manneken Pis e de René Magritte, a cidade tem muito mais a oferecer. Perca-se nos parques, museus, igrejas, bairro da luz vermelha (sim, lá também tem!), palácios, museus e igrejas para depois descansar na Place Du Petit Sablon deliciando-se com um chocolate belga! Depois me conte!


terça-feira, 12 de julho de 2022

Real Gabinete Português de Leitura

   

REAL GABINETE PORTUGUÊS DE LEITURA

RIO DE JANEIRO - BRASIL.


               Orgulho de uma cidade, orgulho de um povo, orgulho de uma cultura e sobretudo orgulho de um idioma, o Real Gabinete Português de Leitura é notável em todos os seus aspectos. Síntese do que há de mais relevante no campo das letras no universo do idioma português, atinge sua notoriedade embasada na importância de seu acervo. Apelidado de "Catedral da Cultura Portuguesa", não sem razão e sem falsa modéstia, é ainda mais que isso! Um templo verdadeiramente sublime, guardião de um acervo fantástico que cresce a cada dia e que mantém a memória viva e o presente atualizado.

              Tendo como origem uma biblioteca fundada por 43 imigrantes portugueses no ano de 1837, o gabinete cresceu e logo teve sua sede transferida de uma casa particular para o atual e definitivo edifício, passando antes por outros dois endereços. A essa altura a instituição já havia garantido aos cariocas de origem portuguesa um local digno para pesquisa, empréstimo e leitura das obras vindas da Europa, fomentando o costume e o gosto pelas letras e garantindo uma conexão com a terra natal. 

              Assim o prédio, que teve sua pedra fundamental lançada honrosamente por Dom Pedro II no dia 10 de junho do ano de 1880, foi erguido com esmero exibindo uma única fachada assobradada. Sua inauguração deu-se em 12 de dezembro de 1888, pouco menos de um ano, antes da queda do regente e instauração da República. Com projeto do arquiteto lisboeta Rafael da Silva Castro o edifício de dois andares foi o primeiro na capital do império a ter uma estrutura metálica e foi o responsável pela mudança do nome de sua rua (antes Rua da Lampadosa) para Luís de Camões. Erguido em um terreno de fita do Centro Histórico do Rio de Janeiro, adotou o estilo Neomanuelino, que desbancou outros estudos que iam do estilo neoclássico ao eclético italiano, por ser considerado mais adequado. Esse estilo era perfeito para evocar as glórias portuguesas calcadas nas Grandes Navegações da Idade Moderna, embasando de forma sutil sua importância cultural no período de maior projeção lusitana. O estilo foi então determinado pela diretoria antes mesmo de encomendar o projeto. Assim a cidade ganhava então um de seus poucos exemplares do neogótico português.

              Aqui cabe uma breve descrição do que foi o Neogótico Português ou Manuelino. Em Portugal o estilo gótico na era medieval foi muito tímido e um tanto pobre, entretanto, nos finais do século XV e início do século seguinte (período em que a Europa já vivia o Renascimento), os domínios coloniais da Casa de Avis lhe trouxeram muita riqueza, o que motivou o surgimento de um gótico tardio extraordinariamente trabalhado, batizado de Manuelino. Os impostos sobre o ouro e o comércio de especiarias chegavam ao Rei Manuel I pelas rotas marítimas, estabelecidas principalmente por Vasco da Gama, depois que circundou o continente africano: motivo pelo qual esse estilo exibe farta ornamentação náutica com animais marinhos, seres mitológicos, muitas conchas, cordas, âncoras e tudo o mais que se relacione com a vida em alto mar. Presentes também todos os brasões e símbolos nacionais em conjunto com o rendilhado e demais temas do estilo original. Grandes edifícios surgiram ou foram terminados nesse reinado e são hoje belíssimos testemunhos dos feitos portugueses; alguns deles, como a Torre de Belém e o Mosteiro dos Jerônimos, enriquecem a lista de patrimônio mundial da Unesco.

               Como o estilo Manuelino é o que melhor representa a glória do país ibérico, nada mais óbvio que trazê-lo para os trópicos, em uma versão mais leve, mesclando o heroísmo naval com sua exemplar cultura literária. É o que temos! Na fachada, por exemplo, estão quatro esculturas representando o descobridor do caminho marítimo para a Índia, o autor de "Os Lusíadas", o descobridor do Brasil e o mais proeminente rei da era dos descobrimentos. Outros importantes nomes das letras também aparecem na decoração externa, tais como Gil Vicente e Almeida Garret mas, não com tanto destaque e sim em pequenos medalhões com seus bustos em perfil. 

           Essa reinterpretação do estilo em pleno século XIX traz um certo romantismo historicista ao prédio e um patriótico vínculo inquebrantável com as origens portuguesas. O fato de optar por uma estrutura metálica conferiu-lhe à época uma vanguarda tecnológica que fundia seu passado, tão bem representado pelas linhas adotadas, com seu futuro de avanços e conquistas culturais. Toda essa linguagem, tão apropriada para o mundo das letras, ainda hoje, encanta as pessoas já em sua entrada. O ar solene de sua cantaria se eleva com a perfeita simetria de seu conjunto e com o destaque que ganha sua porta rigidamente central. O aspecto triunfal de sua estatuaria e o refinado rendilhado de seus detalhes decorativos ajudam a fazer dele um marco na cidade.

                   E ao entrar tudo fica ainda mais belo!

             Abaixo, importante pormenor mostrando as duas esculturas que ladeiam o pórtico arcado. Do lado esquerdo da entrada está o célebre poeta Luís de Camões com trajes de fidalgo renascentista e segurando um livro entreaberto. Atrás de sua perna uma pilha de obras. Do lado direito (ocupando, portanto, o posto mais importante na frontaria), ergue-se Dom Henrique, o "Infante de Sagres", empunhando uma espada com sua vestimenta medieval menos elaborada mas, que em certos detalhes lembra uma veste de batalha, exibindo uma túnica com o brasão real da dinastia de Avis e uma Flor-de-lis no peito. Atrás de si uma esfera armilar, símbolo de sua pátria.

         Dando complemento ao conjunto, situam-se nas duas extremidades da fachada, as outras duas estátuas representando dois dos mais importantes descobridores: Pedro Álvares Cabral (na esquerda) e Vasco da Gama (na direita). Esse posicionamento dos descobridores, levando em conta a hierarquia estabelecida na composição da elevação, me parece um tanto equivocada. Mesmo que Gama tenha maior importância histórica, foi Cabral quem descobriu o Brasil. Nesse ponto me pareceu que os projetistas e seus contratantes, perderam a oportunidade de reverenciar e ter mais consideração à antiga e principal colônia.




           As quatro esculturas, assim como os medalhões incrustrados nas paredes, são de autoria do escultor português José Simões de Almeida Júnior e foram cinzeladas em Lisboa. Cada qual possui a mesma escala heroica com cerca de 2,20m (dois metros e vinte centímetros) de altura e se postam à frente de alguma imagem que lhe faça referência: Camões tem livros, Dom Henriques a esfera, Cabral folhagens tropicais e Gama um timão.

 
                A porta de entrada com sua moldura tripla em arco pleno sem tímpano, exibe rica talha em baixos e altos relevos. Bem no centro de toda a composição ergue-se um conjunto composto por três dos mais importantes motivos da arquitetura manuelina que são o Escudo Nacional (brasão português), a Esfera Armilar e a Cruz de Avis. 
Seguindo na análise dessa parte da fachada vemos, parcialmente, acima e em cada lado  da "esfera dos matemáticos" os mastros das bandeiras de Brasil e Portugal apoiados numa cinta torcida. Acima de cada escultura sustentada por peanha, dois pináculos ricamente decorados com cogulhos (ornato em forma de repolho) e ladeando o grande portal duas pilastras terminadas em agulhas. Em toda essa talha não estão presentes os típicos elementos naturais, marinhos ou fantasiosos encontrados na versão europeia, nem mesmo os adereços de interpretação naval muito típicos em todo o neogótico português.


          A posição estratégica do edifício no quarteirão e a perspectiva que tem da rua à sua frente,
fazem dele um encanto só!  As paredes em calcário esbranquiçado refletem a luz tropical de forma a dar ainda mais destaque ao prédio.    

              O edifício ocupa toda a extensão da testada do terreno, vencendo a distância de 22m (vinte e dois metros) e se eleva à cerca de 20m (vinte metros). Quase quadrado, tem uma divisão bem clara e uma distribuição bem simples de todos os componentes da fachada. A porção central ganha destaque por se projetar levemente da face do prédio e por atingir a mais alta cota. Nela estão a altíssima porta de entrada e o letreiro do gabinete Real. 
             O andar de baixo tem as maiores, mais trabalhadas e mais bonitas janelas ( as duas exibem um arco ogival abatido denominado de Arco Tudor, também conhecido como arco gótico inglês) que inserem detalhes em arcos plenos em conjunto com três delgadas colunas, duas estrelas de oito pontas e um círculo contendo a Cruz de Avis. Arrematando tudo um gradil pintado de preto formando uma baixa cerca com portões centralizados.
                O andar de cima, com sua sutil platibanda e testada com o nome do Real Gabinete, ostenta alguns elementos bem característicos do neogótico, grifados na fotografia que segue imediatamente abaixo.



                   
                    Na parte superior da fachada a simetria fica ainda mais evidente em razão da altura do corpo central e da exatidão no rebatimento das linhas. Nesse sentido o desenho é perfeito e adquire um exato equilíbrio entre seus elementos. O par de aberturas com jogos de arcos plenos sustentados por pilastras (muito características do período gótico) que preenchem os dois campos laterais e são claramente separadas da janela central por luminárias de ferro, marcam o ritmo e a escala das  áreas abertas, em contraste com uniformidade da densa parede de pedras de Lioz trazidas de Portugal. A janela central, por sua vez, repete a escala da porta imediatamente abaixo e ganha ainda mais altura graças à verticalidade da decoração de sua moldura. O conjunto é muito agradável; nada é dissonante.

               O salão de leitura principal é um espetáculo! Extremamente austero e impressionantemente silencioso, preserva suas linhas sem a menor interferência moderna em sua estética. É uma viagem no tempo! Regressando para uma época encantadora. A pintura negra da estrutura metálica aparente, fundida na Bélgica, serve de fundo para a rica douração dos elementos decorativos e para o colorido das lombadas dos livros. As paredes de fundo seguem com o mesmo tom de verde musgo que vem do teto. Essa cor resta aparente e outras áreas do interior.

  
                Enorme, esse salão de leitura, ocupa cerca de quatrocentos metros quadrados de toda a edificação, desconsiderando as duas frisas repletas de livros até o teto. São, portanto, três galerias revestidas de obras somente da língua portuguesa. Uma ao rés do chão e duas nos corredores metálicos.  Seu acervo só é menor que o da Biblioteca Nacional, situada na Cinelândia, a poucos minutos a pé de distância. Duas joias da cidade e do país. Dois invejáveis acervos guardados em prédios esplêndidos.


                As colunas de ferro com formato levemente retorcido e com aplicações de flores estilizadas em dourado. O interior do grande salão de pesquisa é riquíssimo em detalhes como o trabalho do piso vazado das galerias (visto aqui de baixo) pintados com cor clara para obter destaque em meio à toda estrutura escura. O apoio para as escadas das estantes, em latão dourado, percorre todo o perímetro dos andares em frente à todas as altas prateleiras que guardam mais de 350.000 volumes. Esse número e a quantidade de títulos só aumenta pois, toda e qualquer obra impressa em Portugal (de relativa importância) ainda tem um ou mais livros enviados para o Gabinete. 


Considerada como uma das dez mais belas bibliotecas do planeta por qualquer ranque.


As galerias são belíssimas e já serviram de cenário para o cinema, tv e publicidade.

            Ainda na fotografia de cima, perceba na escolha do verde musgo para as superfícies que aqui parecem lisas (na verdade é uma pintura que lembra um tecido brocado) em contraste com o amarelo dos ornamentados painéis acima dos arcos, que fazem a transição da parede para o teto. Nada mais brasileiro que o uso das duas principais cores da bandeira nacional. O verde, na verdade, não deixa de ser um elo de ligação entre o nosso país com nossa origem europeia, uma vez que se trata da cor da Casa de Bragança.  Sim, a verdade por trás do verde e amarelo da nossa bandeira atual, tem origem menos prosaica que a versão republicana na qual são homenageadas nossas riquezas (verde da mata e amarelo do ouro). As duas cores simbolizam a união de Don Pedro I com Dona Leopoldina onde o primeiro é a cor dos Bragança e a segunda dos austríacos Habsburgos. 


O piso ganha um xadrez em mármores branco e preto.
 Assentado com suas linhas em diagonais amplia a sensação de espaço.


O mobiliário de época, ao gosto manuelino, é mantido de forma impecável.
Eu particularmente adoro essas cadeiras escuras com couro gravado e taxas enormes! 
As linhas dos móveis são claramente portuguesas, ainda que fabricadas na França.


O gigantesco lustre de ferro e bronze com uma lanterna central cercada por oito menores.
Ele aceso é belíssimo pois em cada junção das linhas metálicas há uma lâmpada.
Mais uma vez outra linguagem subliminar trazendo um formato que lembra muito o globo aramado.


O pé direito do piso à claraboia é de 23.50m (vinte e três metros e cinquenta centímetros), e mesmo
 com essa altura extraordinária, a sala de leitura mantém-se extremamente silenciosa e acolhedora.


O belíssimo desenho do vitrô tricolor do teto. Na foto, aceso durante o dia pela natural iluminação zenital.
O desenho desse painel lembra a arte persa, muito difundida na península Ibérica na era medieval.


                A altura desse espaço é desconcertante. De fora não se imagina sua tamanha grandeza! E a claridade que vem de cima lembra a estética gótica, onde a luz penetra do alto e vai aos poucos esmorecendo até chegar ao chão. Como essa relação entre claro e escuro é mais apropriada à edificações religiosas ( nas quais o simbolismo leva a crer que os céus são iluminados e a terra vive nas sombras, e portanto, dependente deles), nesse ambiente de cunho literário a luz é amplamente refletida no chão de mármore branco. Bingo! Por isso então a escolha de um revestimento mais simples (quase pobre em comparação ao resto) e muito reflexivo em contraposição às elaboradas frisas, rica forja, paredes cobertas de livros e teto exuberante.  Se o chão fosse igualmente decorado com riqueza de cores e materiais ou mesmo com o uso do parquet, o ambiente todo seria certamente muito mais escuro. O lustre lembra um globo aramado, como dito anteriormente, pende soberbo e onipresente nesse grande vão livre. A simetria dos desenhos que partem dele tornam o conjunto mais harmonioso e de fácil entendimento. É mesmo um lugar para ser apreciado com calma e com prazer. 


Detalhe de um dos cantos da claraboia.


 Escultura que retrata Luiz de Camões bem no ponto central do salão.
Maior destaque impossível!
Nessa fotografia é nítido o desenho em stencil nas partes verdes.


 Detalhe do precioso trabalho em ferro na escada principal.

            Existem, ainda outros cômodos de interesse nesse prédio (que infelizmente não pude fotografar) e mais um andar a ser explorado. O acervo guarda algumas relíquias impressas de séculos passados, autores famosos, obras raras, primeiras edições, documentos de importância histórica e tantos outros. Presentes também nesse acervo importantes obras de arte na forma de quadros e esculturas de  bronze ou mármore. O prédio conta também com alguns pisos cerâmicos muito bem trabalhados, belos tetos em estuque e outra claraboia menor seguindo o estilo do teto de vidro do salão de leitura.  Isso tudo mais que justifica uma visita ao local. Lugar imperdível!


sexta-feira, 10 de junho de 2022

Casa da Música do Porto

   

    

Casa da Música do Porto


            A casa da Música do Porto é a mais moderna e a principal sala de concertos de Portugal. Estrategicamente localizada numa movimentada esquina da cidade do Porto, que conecta a larga avenida da Boavista com a Praça Mouzinho de Albuquerque (Rotunda da Boavista), teve como propósito dotar seu país e sobretudo sua cidade de um equipamento à altura das comemorações do evento Porto 2001, celebrado no ano em que foi transformada na Capital Europeia da Cultura. 






             A inconfundível e criativa forma, acentuadamente geométrica, que hoje se ergue no local onde antigamente havia uma oficina de bondes do município, obteve reconhecimento mundial e arrancou acalorados elogios da crítica especializada em arquitetura e design. Suas linhas foram recebidas com entusiasmo e a obra foi celebrada como a mais extraordinária casa de concertos construída nos últimos cem anos. Assim sendo, foi alavancada à uma posição de destaque, figurando ao lado de outras afamadas e complexas obras do gênero, como a Ópera de Sidney e ao Walt Disney Concert Hall de Los Angeles, Califórnia (já visitado por esse blog).
            Já a crítica daqueles meramente mortais, ou seja, da população em si, ficou bastante dividida. É certo que obras desse calibre nunca agradam à todos mas, nesse caso a rejeição foi bastante grande. Somente o tempo vai garantir sua completa inclusão no gosto dos moradores locais como aconteceu anteriormente com outros projetos de vanguarda, entretanto, a despeito das tantas opiniões pessoais, o prédio tornou-se, antes mesmo de terminado, um ícone arquitetônico e cultural português.
            Eu particularmente não gosto em nada do resultado final de seu exterior. Nem do prédio, nem mesmo de seu seco e estéril entorno imediato mas, como se trata de gosto pessoal minha avaliação ficará restrita às suas virtudes e defeitos. Vamos analisar alguns problemas recorrentes em projetos atuais e soluções inovadoras ou tradicionais, de ordem prática ou formal. 




O volume com suas dobras, planos e inclinações.
Por fora apenas concreto, vidro, metal e pedra.

             Esse volume facetado, que alcança em seu total algo em torno de 22.000 (vinte e dois mil) metros quadrados, foi concebido pelo arquiteto neerlandês Rem Koolhaas, do escritório OMA, que se sagrou vencedor de um concurso extremamente privado para o qual foram convidados apenas 5 (cinco) globalmente reconhecidos escritórios de arquitetura, com o claro intuito de não somente projetar um prédio de ponta mas, sem dúvida nenhuma outorgar à nova casa da Orquestra Nacional do Porto uma assinatura de fama mundial. Para esse fim a banca examinadora atingiu seu objetivo entregando a responsabilidade dessa encomenda ao vencedor do prêmio Pritzker de arquitetura do ano 2000.




Acima uma imagem de sua implantação (em projeto) colhida na internet. 
Atenção à posição do terreno isolado por ruas.




            Na fotografia aérea anterior, também colhida na internet, pode-se ver como ficou a implantação do prédio em seu lote. É inequívoco seu destaque no entorno e bem clara sua direta relação com a grande Rotunda da Boavista. Seu formato visto de cima quase coincide com o formato do terreno, num diálogo bastante coerente e harmônico. Parece inclusive apontar para o centro da grande área verde que ostenta o Monumento aos Heróis da Guerra Peninsular.




            Eis acima uma fotografia do Monumento aos Heróis da Guerra Peninsular. Trata-se de uma coluna que sustenta a figura de um enorme leão de bronze, sobrepujando uma águia, em comemoração à vitória dos portugueses, com auxílio dos ingleses, sobre as tropas de Napoleão. Em sua base estão vários conjuntos alegóricos, que contornam o enorme pedestal, retratando cenas e personagens das batalhas. Destaque para a figura feminina no centro do conjunto, empunhando uma espada numa das mãos e uma bandeira  portuguesa noutra, simbolizando a vitória guiando o povo e a artilharia.



Abaixo a analogia do leão simbolizando as forças inglesas sobre a águia derrotada representando a França.



Em seguida uma visão da Casa de Música a partir dos Jardins Mouzinho de Albuquerque.




                No atual plano geral da Cidade do Porto, a Rotunda da Boavista se comporta como um elo de ligação entre a cidade velha na margem do Douro e essa região mais moderna onde foi erguida a Casa de Música. Sua porção histórica de traçado espontâneo exibe um conjunto de edificações tipicamente portuguesas dos séculos passados somado à ouros estilos historicistas, diferentemente dessa região com características mais modernas de traçado planejado e arquitetura contemporânea e universal. Aqui tem-se o domínio de uma arquitetura mais moderada e retilínea, de caráter prático e funcionalista, sobre um planejamento urbano de prancheta que prima por amplas, arejadas e organizadas vias, implantadas num território predominantemente plano com pouca variação de cotas e leve declive rumo ao mar.

              Contudo a arquitetura do local nem sempre foi assim. Apesar de ter sido considerada por muito tempo uma área periférica à oeste dos tradicionais bairros da Baixa e do Centro, essa vasta região serviu como polo de expansão para o crescimento portuense dos finais do século XIX. Apesar de predominarem os bairros operários de baixa renda ao norte e à leste da rotunda, o cenário à oeste desenvolveu-se de forma distinta, não deixando de lado uma nova elite em ebulição que escolheu o caminho para o mar, batizado de Avenida da Boavista, para construir suas novas residências. Nessa avenida de cerca de 5km (cinco quilômetros) foram surgindo inúmeros casarões, em meio à belos e elaborados jardins, implantados em grandes terrenos. À reboque dessa procura pela classe alta vieram outros edifícios da classe remediada, hora assobradados, hora com vários pavimentos, exibindo sempre uma estética eclética com frontarias muitas vezes azulejadas ou com elementos decorativos afrancesados. Esse agrupamento, mais denso na proximidade da via rotatória, criou um rico e interessante conjunto arquitetônico respondendo pelo gosto dominante entre as últimas décadas dos anos 1800 e as primeiras dos anos 1900.




Parte dos edifícios da Avenida Boavista vistos da esplanada da Casa de Música
Atenção à terrível cerca colocada posteriormente (imagino).


                Tida por muito tempo como uma região de entroncamento urbano, seu  crescimento foi lento e seu desenvolvimento tímido. Ainda que na longa avenida das chácaras burguesas as elaboradas  construções de época estivessem presentes, isso não era uma realidade que se estendia para as outras diversas direções. O próprio entorno da rotunda exibia um caráter bem menos nobre e a ampliação do tecido urbano a partir desse núcleo ajardinado deu-se de forma radial para todas as direções, atingindo diferentes bairros com diferentes tipologias e padrões sociais. Aos poucos, enquanto os bairros menos privilegiados cresciam e se desenvolviam a paisagem da afamada avenida também mudava. Com o franco crescimento da cidade impulsionado com a virada para o século XX, a via foi alargada, perdendo seu arborizado canteiro central e muito do seu patrimônio de época. A maioria de seus palacetes deu lugar ao progresso na forma de insípidos espigões modernos que hoje em dia alternam  hotéis, condomínios residenciais verticais e horizontais com edifícios comerciais. 

             É fácil perceber que esse processo se acentuou e ganhou impulso no afã modernista das décadas de 60 (sessenta), 70 (setenta) e 80 (oitenta) do século passado. Foi nesse período de apenas trinta anos, que caiu por terra a maioria dos casarões que sobreviviam ao tempo. Raríssimas são hoje as edificações de real interesse arquitetônico. É, portanto, nesse contexto que Rem Koolhaas desenvolveu seu projeto com total liberdade estilística. É também na esquina da Avenida da Boavista com a via circular que hoje se encontra o grande volume desconstrutivista, completamente branco, da Casa de Música do Porto. 
        
              Essa liberdade, no ato do projeto, teve como partida a negativa ao formato tradicional das casas de espetáculo e salas de audição projetadas pra essa função até aquele momento. Tais teatros, casas de ópera e outros tantos que dependiam diretamente da acústica de suas principais salas de espetáculo, sempre repetiam o mesmo formato, presos à conhecida forma retangular. O desejo do arquiteto era quebrar com esse arquétipo e avançar nos desenho e estilo de um equipamento tão importante para a sociedade e um prédio tão emblemático em qualquer cidade. A ideia de modernismo e atualização ao gosto da arquitetura do século XXI, tão pródigo em tecnologia e vasto em possibilidades, moveu  os projetistas nesse sentido. Depois de muitos estudos de acústica chegou-se à conclusão de que o formato de "caixa de sapatos" (como teria sido caracterizado) era de fato a melhor entre todas as opções. Não à toa, todas as casas do gênero antes dessa, repetiram o mesmo padrão em suas plateias. 

            O holandês fez então o que se faz no momento: um edifício que tem inserido em seu corpo um enorme espaço quadrangular que não é retratado exteriormente. Dessa forma, como em diversas obras contemporâneas, a sala de espetáculos fica no coração da edificação, cercada por outros espaços que possuem relação direta com a forma externa. Poderia dizer que é um belo exemplo da imposição da forma sobre a função, pois exteriormente o resultado não deixa claro o que acontece em seu interior. Serviria para sediar qualquer coisa porque não denota sua finalidade. Isso pode parecer interessante, só que não foge de um problema sério nesses casos que é a difícil leitura desse tipo de equipamento por parte da população que não o conhece. Tá certo que em uma obra faraônica, que pula aos olhos de todos, seu reconhecimento passa a ser geral mas, fica sem cara de teatro e leva o observador a fazer associações muitas vezes depreciativas.

                Outro problema (e ainda mais grave) é o enorme desperdício de metragem quadrada em espaços residuais que inevitavelmente  surgem em prédios com formas muito caóticas ou muito soltas. É um risco que se assume quando se projeta de fora pra dentro e em raríssimas vezes, essa escolha na forma de criar, consegue uma proporção aceitável desses espaços inutilizáveis de que os interiores podem ser vítimas. Levando em conta a gigante metragem quadrada desse colosso, podemos pensar que a presença de algumas áreas subutilizadas ou outras preenchidas por vãos e cantos inacessíveis, pode parecer razoável e até mesmo aceitável. O problema é quando se repetem e se multiplicam. Não podemos esquecer do custo desses metros quadrados desperdiçados somente  para satisfazer o desejo estético.

          Já na área externa acontece exatamente o oposto no uso do espaço. O formato piramidal invertido concede ao campo completamente pavimentado da chamada praça menor, que o envolve, um aproveitamento fantástico. Não há espaço nenhum desperdiçado. Sim, a área circundante à Casa de Música se transformou numa ampla praça seca que faz um interessante contraponto com sua vizinha completamente ajardinada e exuberante onde a população encontra sombra e silêncio. Essa relação entre as duas áreas de estar urbano se completam. Enquanto os clássicos jardins da rotunda servem para o descanso e contemplação, a aberta esplanada da obra de Rem serve para atividades e manifestações culturais, além de ter se tornado a melhor pista de skate da cidade.


Acima, um skatista desfrutando das ondulações do piso.

Abaixo o interessante detalhe do pequeno piso de vidro redondo
que funciona como uma claraboia para o andar inferior.


                A praça, portanto, por ser completamente pavimentada, não oferece nenhum espaço para o verde, o que faz do prédio um objeto isento de qualquer interferência. Por isso suas fachadas muito brancas recebem enorme destaque nos dias ensolarados livres de qualquer sombra que atrapalhe seu jogo de planos e dobras. O material escolhido para recapar toda essa área de quase onze mil metros quadrados foi o mármore travertino natural que muitos fazem analogia com o aspecto da cortiça. Realmente lembra muito a casca extraída do Sobreiro, por não receber tratamento ou polimento, mantendo seu aspecto poroso. Essa analogia agrada muito, porque referencia um material importantíssimo para a economia local e muito querido pela população. 

            Além de um tímido e atrapalhado totem de comunicação visual, locado quase na esquina (junto ao acesso por escada ao subsolo), esse gigantesco espaço aberto não possui mais nada! Nenhum vaso com vegetação, nenhuma fonte, nada de mobiliário urbano, nenhuma escultura e nenhum outro tipo de arte. Uma pobreza que dá dó! Seu piso não recebe nenhuma paginação, nenhuma iluminação embutida, nenhuma textura diferente, nada! Apesar de pobre em detalhe isso acaba conferindo uma grande versatilidade ao espaço aberto, mas não sem prejuízo, pois não há  nenhuma marcação que oriente a circulação ou organize os espaços, invadindo inclusive as áreas de estacionamento e serviços que acabam se misturando ao todo. A intenção me parece mesmo essa: deixar a esplanada completamente uniforme para dar destaque ao edifício implantado rigidamente em seu centro. 

            O que faz com que esse campo de mármore tenha um certo interesse é a variação de suas cotas promovida por uma sutil ondulação do piso em duas extremidades do terreno. Essas elevações (que cobrem duas áreas fechadas)  fizeram com que espaços comerciais fossem possíveis junto à calçada. Nessas áreas de cobertura ondulada também estão dois óculos de vidro (um em cada esquina) e um conjunto de quatro bancos esculpidos diretamente no piso defronte à cafeteria. São pequenos detalhes que causam mais curiosidade do que admiração. Os próprios bancos que servem à praça não são muito confortáveis enquanto os óculos cumprem bem com a sua função de claraboia.


Abaixo um dos bancos esculpidos no piso: 

Manter o piso de Travertino Romano limpo passou a ser uma utopia.

Abaixo, a esplanada ganha altura, em uma de suas extremidades inclinadas, cobrindo os andares subterrâneos do conjunto. Enquanto o prédio exibe suas radicais linhas retas a cobertura da praça ondula levemente.



                    O prédio segue a temática de não ter uma elevação de destaque em detrimento das outras restantes, muito embora exista uma certa hierarquia entre as fachadas. Essa linha projetual de não conceder à uma de suas frentes um interesse de maior peso, dá-se muito provavelmente por sua implantação solta ao centro de um lote irregular e rodeado por um anel viário. O fato dele ser facilmente visto de todos os lados (tanto a pé como de carro) e da praça seca o rodear completamente, faz com que passe a ser quase que uma escultura. Isso é de uma riqueza tremenda e eleva a arquitetura á um patamar de excelência.  
   


imagem esquemática colhida na internet

  
                O marcante volume monolítico pode até ser escultórico, avant-garde, icônico e personalíssimo mas, falha em um quesito básico quando o assunto é o conforto e a praticidade de quem chega, pois não oferece nenhum tipo de proteção ou área de espera do lado de fora. Não existem marquises, pérgulas, lógias, balanços ou qualquer outro tipo de cobertura que até mesmo faça uma ponte com a arquitetura tradicional portuguesa. Mesmo suas paredes inclinadas não chegam a oferecer proteção suficiente contra as intempéries. Isso afeta bastante o uso, pois priva seu visitante de um local adequado para os momentos pré e pós espetáculo, sendo a escadaria o único local onde as pessoas podem se encontrar antes de entrar ou interagir na saída. É bem verdade que existe uma pequena cafeteria com acesso público direto ao exterior e um estacionamento subterrâneo com capacidade para 600 (seiscentos automóveis) mas, no caso da primeira, não serve como garantia ou solução do problema e o segundo não pode ser levado totalmente em conta porque nem todos utilizam o automóvel para chegar ou sair. De qualquer modo, estamos tratando de um auditório que tem como proposta a interação entre interior e exterior e o franco intercâmbio com a cidade.




A falta de um elemento arquitetônico realmente eficiente para a proteção solar foi compensada com a colocação de toldos do lado de fora da cafeteria. 
A presença desse panejamento (e de sua estrutura) fere a composição e a volumetria, 
afetando diretamente a proposta do prédio.




A área externa da cafeteria é marcada pelo rebaixamento do piso da praça.
Essa parte pode ser transformada em palco para apresentações ao ar livre.

Na planta baixa a seguir é fácil achar o piso rebaixado onde se encontra a área externa que serve à cafeteria: única diferença de cotas em toda a praça.


                    
                  Completamente lisas e sem nenhum tipo de ornamento, as fachadas diferem entre si pelo formato, tamanho e aberturas tão somente. Dessa forma, a sutil hierarquia existente é marcada pelos três elementos em conjunto, com exceção de sua grande e escultural escadaria. Na composição da fachada, esta bela peça parcialmente engastada, parece se ligar com a aresta imediatamente ao seu lado, puxando a visão do observador para o alto. Rigidamente retangular e com um único lance, o plano inclinado de concreto plissado marca a entrada principal e orienta os usuários para o lobby de entrada, já que é a única escada aparente e o único elemento projetado para fora do bloco escultórico. Quase como uma porta que se abre de uma nave espacial.






A monocromia é a tônica do projeto. Uma forma poliédrica completamente branca.
Interessante o padrão criado nas paredes pelos frisos do concreto aparente.




A escadaria onde as pessoas se encontram e ficam sentadas.
A noite os degraus se iluminam com faixas de LED o que a deixa muito mais atrativa.




                Muito próximo do arranque da escada  e à sua direita, existe um vão junto ao solo, vedado por um conjunto de portas envidraçadas, que dá acesso direto à um hall com elevadores.



               Mas o jogo de hierarquia não acaba por aí. Assim como a escadaria e a porta principal ficam voltadas para a avenida de maior interesse (Avenida da Boavista) o grande vitral, alinhado com a sala de espetáculos, fica direcionado para a Rotunda da Boavista. Dessa forma as duas principais testadas do terreno ganham os dois mais importantes elementos que reafirmam a importância histórica e espacial do  entorno. 



Uma fotografia com o interior iluminado, facilita a visualização da sala de espetáculos, por essa que é a maior e mais importante abertura do bloco.

 

No desenho imediatamente abaixo vê-se o janelão na face mais à direita e as grossas paredes laterais do auditório principal.



Tanto as plantas baixas como os cortes me lembram a forma de um cristal de rocha.
Notável a relação de identidade entre plantas, co e volume.



                Nesses desenhos acima (plantas baixas e cortes colhidos na internet) é fácil notar como a plateia é inserida no volume do prédio. Na planta baixa mais acima vê-se o espaço  retangular dominante, com duas plateias paralelas às faces menores. A plateia maior fica de frente para o palco, enquanto a outra menor e mais alta, fica na porção traseira de onde se apresenta a orquestra. Na cota da porta de entrada ao grande espaço de apresentação a planta baixa ganha um detalhe inclinado na parede de trás que é vencido pela inclinação da plateia. A grande sala de espetáculos mantém-se retangular em todo o plano dos assentos. Já no corte mais abaixo o enorme volume ao centro, rigidamente ortogonal, ganha destaque.


                A planta baixa não oferece um espaço de foyer. Inexistindo no edifício a relação do público com um grande espaço para a interação social. Essa relação humana se dá apenas pelos corredores e escadas do interior. Não há o tradicional salão de convívio público e sim uma enorme circulação da porta de entrada até as portas da sala de espetáculos. Isso é perturbador e um tanto pobre, pois ceifa do prédio e priva as pessoas daquele propósito do encontro social, focando o interesse apenas no espetáculo, como se passasse a informação de que ao público cabe entrar, sentar, assistir, levantar e ir embora! Algo quase mecânico!  


            As perspectivas internas também são muito pobres e os planos que se sobrepõem pouco dialogam entre si. Óbvio que aquele pé-direito enorme não poderia faltar mas, ao olhar pra cima só se vê paredes estéreis e completamente vedadas e um teto distante e desinteressante, contudo, o fluxo é um jogo de estreita e alarga em uma espécie de labirinto, causando ao mesmo tempo um mal estar pelo o que pode vir, seguido de uma surpresa ao se deparar com o inesperado. Espaços de interesse e de uso são cortados por circulações e muitas vezes se conectam por corredores inóspitos e austeros. O orgânico parece ser reinventado e deformado dando à esse fluxo uma nova maneira de interagir com a arquitetura em movimento. Relacionar-se com esses interiores deformados resulta na verdade em uma experiência dramática. 


           Decoração? Parece um terrível palavrão para arquiteto! Nada! Nada! Nadinha além dos elementos arquitetônicos (na sua maioria superfícies forradas com cerâmica ou forração colorida) e de um jogo de esculturas/floreiras no patamar da escada principal! Isso é de fato quase nada em um interior onde a estrutura enfeita muito pouco e os planos inclinados muitas vezes parecem desproporcionais ou desnecessários. Uma chance desperdiçada para quebrar essa rigidez e tornar os espaços internos mais receptivos seria explorar mais os materiais de revestimento, só que isso não acontece sempre. Os pouco variados materiais que  revestem pisos e paredes são quase espartanos: obviamente modernos; frios sem dúvidas; por vezes ásperos; por vezes escorregadios; monocráticos em sua maioria; distantes em sua maioria; monótonos em sua maioria; estéreis de fato! Parece um deleite para os puristas e para os profissionais da área da arquitetura. Um êxtase para os intelectuais e boçais. A glória para os minimalistas e a confirmação dos desejos dos futuristas! No campo do Design parece incorporar uma contradição contemporânea e responder por uma estética bem atual, onde e quando o "menos é mais" encontra eco e chega ao seu limite. É o design do quase sem desenho...


                    A relação entre as diversas facetas e os planos externos com os ambientes internos (que com eles fazem contato), é muito bem exemplificada nas três fotografias seguintes, que mostram como uma escada secundária de acesso público se comporta e preenche um espaço irregular. Visto de fora o pano de vidro acompanha os planos e se dobra tal qual a fachada. Por essa vitrine é possível ver o movimento do público além do tratamento dado à iluminação que em  muitas partes do interior tomam as paredes por completo. Isso é muito legal e dá um aspecto bem moderno. Infelizmente por essa janela também é possível ver parte da estrutura da escada que ao descortinar o avesso de sua porção mais baixa me sugere erro de projeto, porém, haverá quem diga até sob tortura que foi proposital. Então tá! seguimos na viagem... sem antes dizer que esse pequenino "detalhe" aparece outras vezes com outros elementos estruturais que chocam-se com as aberturas. 





Uma parede inclinada e outra no prumo. 
 Jogos de planos da fachada compartilhando o mesmo pano de vidro.
O avesso da escada!!!! Defeito ou detalhe?




As angulações dessa escada são muito interessantes e fazem dela algo único.
O vermelho no detalhe tenta aquecer o espaço.


                        Vistos de dentro, a escada moldada às formas nada paralelas do ambiente, o piso que se alarga e se estreita e parte do teto curiosamente baixo, por serem completamente revestidos com chapas metálicas, imprimem um forte aspecto minimalista. Essa unidade cromática e a pouca variedade nos materiais de acabamento são muito eficiente para uma circulação que tem como propósito o acesso rápido ao destino. A falta de atrativos nas circulações por culpa da completa ausência de decoração, arte, mobiliário ou equipamentos faz com que o público não se detenha com  o que não tem muito interesse. Apesar do discurso muito inovador explicar que as circulações assumem a função de lobby, fazendo uma leve transição entre o exterior e o interior em uma rota de interesse e descobertas, não é exatamente o que acontece. Dessa forma criando uma unidade cromática quase perfeita com as superfícies de concreto aparente os materiais empregados trabalham para exatamente o oposto. A farta iluminação potencializa as faces refletivas e aumenta esse efeito limpo e estéril.


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O desenho dos degraus em bicos sobre o pano de vidro é muito bonito. Pena que por fora fique bem feio
Já o teto cria aqueles cantinhos que mais parecem criadouros de insetos...



A chapa perfurada, de apelo industrial, ganha vida com o reflexo da cor proveniente
da película vermelha que forra parte do guarda corpo de vidro ao centro da escada.

A seguir a escada principal que segue a mesma fórmula...




Acima, eu no primeiro lance da escadaria principal interna. 
Abaixo seu segundo lance.




O único toque decorativo de peso e real impacto, são as películas coloridas 
que fazem referência à bandeira portuguesa. Penso serem posteriores ao projeto. 
De resto tudo muito tímido ou alinhado com a comunicação visual.




O altíssimo pé-direito onde nada acontece a não ser pela perdida viga...
A eficiente comunicação visual ocupa o espaço que poderia ser de arte.




Acima o grupo que mescla escultura com floreira 
na tentativa de humanizar um pouco a área do patamar. 
Nada mais português que um pouco de madeira treliçada.




Escadas enclausuradas: aquela sensação de túnel...
...pisos de alumínio, paredes de concreto e iluminação de backlight...




Para decorar ou pelo menos para diferenciar...
...uma esquisita luminária vermelha!




Letreiro em baixo relevo na comunicação e orientação.




Escadas rolantes e circulações transformadas em substitutas ao lobby.
O caminho até as salas é considerado uma rota exploratória:
 certamente um conceito a ser estudado...






Concreto aparente nas paredes e teto, piso liso e metalizado, paredes com backlight,
caixilho pintado de vermelho e verde e ares de espaçonave.



Inútil querer mobiliar um espaço desses:
 arquitetura pensada para repelir qualquer ideia de ornamento
glorificando a geometria.




A seguir a sala verde: uma das 10 salas de ensaio



            Nessa sala, assim como em outras, o material de revestimento acaba sendo o elemento de maior interesse, visto que as assimetrias dos cômodos se repetem em todas as partes. Os degraus denotam o uso misto que pode acomodar tanto uma pequena plateia como dividir os ensaios em grupos distintos.




                    Esse material verde é espuma de poliuretano e é bem eficiente na absorção sonora. Ele forra parte das paredes e do teto dessa sala destinada para  além de ensaios e gravações à instalações de material de computação para produzir cibermusic conectado ao sistema de informática da instituição. A ausência desse composto nas partes onde o concreto fica aparente é proposital e estudada para permitir a ampliação nos efeitos da acústica.






Um corredor em forma de túnel, com teto baixo e paredes muito próximas, liga uma sala à outra. Presente o jogo de frio e quente, do claro e do escuro.




Os pisos alternam o cimento alisado com metal (quase sempre alumínio).
As paredes em sua grande maioria exibem o concreto aparente.



A forte comunicação visual já pensada no projeto.


                Nessa sala abaixo (como em outras de destaque) o grande janelão está presente e trazendo a paisagem para o interior. Ao ver o prédio por fora, bem introspectivo e introvertido, não se imagina desfrutar de vistas tão generosas. Mais uma de suas tantas contradições, ou seria, mais uma de suas tantas surpresas. O piso segue liso e sem variantes cromáticas como de padrão. A inexistência de mobiliário reafirma o caráter de flexibilidade no uso.




Adorei essa versão moderna da azulejaria, com um padrão tridimensional clássico, deformado pela perspectiva dos planos inclinados e pelo desconexo encontro nas arestas.
 A escolha das cores também foi acertada criando um padrão bem atual.




De forma muito sutil o desenho dos ladrilhos das paredes se repete no piso monocromático.
A pouca mistura de materiais e padrões é respeitada até no pouco mobiliário.



As cortinas de vidro ondulado marcando forte presença.


                Em seguida temos duas visões da sala denominada Laranja. Designado ao ensino e entretenimento infantil, o cômodo sabiamente aproveita a desfavorável inclinação de parte de seu piso e o ingrato formato afunilado para criar um plano com função de arquibancada. Isso cria um efeito muito lúdico e atraente para o público a que se destina. Pode-se deitar, sentar e escorregar pela forração que aquece e nomeia a sala. É como reverter um problema em solução. Nesse local, um dos diversos com função educacional, são feitas apresentações e brincadeiras interativas com sons e imagens. O pilar inclinado, as superfícies de concreto aparente bem refletivas, a parede com iluminação artificial e o tapete felpudo criam um cenário marcante. No chão, os tampões perfilados deixam entender que a sala também pode ser equipada com vários equipamentos ligados à rede de mídia e lógica.





                A seguir a sala roxa, com janela (novamente vedada com a cortina de vidro ondulado) para o interior do grande auditório, também dotada de arquibancada é mais uma utilizada para pequenas apresentações, ensaios e demais atividades. Sua exuberante cor domina completamente o escuro ambiente. De todos, esse é o mais acolhedor, pois tem o teto acolchoado com piso e paredes completamente forradas com o carpete de cor forte. Aqui a monocromia impera e dá destaque aos brilho e forma do vidro.




Mais um cantinho em bico... que não são poucos.
Detalhe para o caixilho em aço inoxidável.





                O segundo maior auditório da Casa de Música, é posicionado numa outra direção em relação à sala Suggia. Ganha, em suas paredes, um revestimento acústico de placas de madeira perfurada pintadas com uma forte cor vermelha. Diferentemente de sala principal tem como característica primeira ser um salão livre, com mobiliário solto e com piso de parquet de carvalho ebanizado. Tudo nessa sala pode ser modificado adequando-se ao propósito de cada ocasião. Esse espaço é destinado às músicas dos mais diversos gêneros: moderna, jazz, blues, tango, samba e assim por diante. Justo por isso é livre para dispor seu lay-out com toda a flexibilidade possível. Aqui mais uma vez está presente a grande parede de vidro coberta por um pesado panejamento escuro e um sofisticado equipamento de iluminação. O desenho das cadeiras soltas leva a assinatura de um importante designer português. 






Interessante notar, na planta baixa seguinte, que o corredor defronte o auditório secundário tem uma cortina de vidro com vista para dentro da grande sala Suggia, em cinza (retângulo maior).
Enquanto o auditório vermelho aparece claramente  locado perpendicularmente com leve inclinação e em branco (retângulo menor)



Na sequência imagens do grande e principal auditório.



                Essa sala de espetáculos musicais é a protagonista de todo o projeto. Considerada o templo da música erudita no país, ganha o nome de Sala Suggia em homenagem à Guilhermina Augusta Xavier de Medin Suggia, uma reconhecida violoncelista portuguesa nascida e morta no Porto. Expoente do violoncelo, revolucionou a técnica de tocar o instrumento, bem como a postura em seu manuseio e sua sonoridade. Mas a vanguarda da luta para introduzir as mulheres no meio musical e quebrar os paradigmas da época foi seu maior legado.
               Tal auditório é o maior dos dois principais e também o mais elaborado. Mesmo que tenha todo o destaque na planta baixa e desfrute das maiores dimensões, não se furta em exibir luxo e sofisticação. Para marcar bem esse destaque, ganha poltronas fixas que acomodam cerca de 1.300 pessoas (com um desenho próprio, porém, de gosto pra lá de duvidoso), um rico revestimento amadeirado com incríveis detalhes dourados (num prédio onde tudo é prateado), duas peças de órgãos antigos encravadas nas das paredes (acima da área de apresentação em ambos os lados) e as sensacionais cortinas de vidro ondulado. 



Parte de um órgão barroco decora a sala Suggia.



Esse enorme objeto quadrado e transparente, pendurado no teto, funciona como uma concha acústica para amenizar a reverberação sofrida nas primeiras fileiras.
Pode também, quando desejado, ser posicionado completamente na vertical e transformado numa tela de projeção.




Acima, a pequena e alta plateia atrás do corpo de música, 
tem baixada atrás de si uma enorme cortina acústica de cor negra 
que veda um dos dois janelões de vidro ondulado dispostos em paralelo,
cada qual em uma extremidade da sala.




Um camarote de aço e vidro projeta-se corajosamente no vão livre da sala.
Um requintado capricho arquitetônico e um detalhe lindíssimo.
 Pena o terrível design de suas poltronas.




Nesse grande auditório as paredes foram revestidas com madeira compensada nervurada que  exibem aplicações de desenho abstrato em metal dourado.
Não seria estranho imaginar que fazem referência à ondas sonoras.




Vistas da passarela suspensa em que se encontra o longo bar atrás da sala Suggia.
No andar abaixo dessa passarela está a entrada principal da sala. 




Tirantes, vidros, betão armado aparente e muito metal: por algum momento duvidei estar dentro de uma casa destinada à música. 




                    Uma coisa que desaponta é a presença desse caixilho abrutalhado no meio do pano de vidro (em detalhe nas próximas 2 fotografias). Isso porque a chapa é inteiriça com apenas emendas verticais. É decepcionante ver que uma peça cuja capacidade estrutural é gigante, dispensando pilares ou outras formas de sustentação por serem autoportantes, aplicada dessa forma. Não tem sentido cortar visualmente pela metade uma peça altíssima como essa. Isso ofusca seu valor tridimensional e não tira o efeito que poderia. Numa obra desse porte e com o valor estimado, poderiam ter achado outra solução.




                    Os vidros ondulados... são sem sombra de dúvidas o mais interessante de todos os materiais empregados  na construção! São admiráveis e de uma força plástica fenomenal. Feitos com refinada técnica, resultam num formato que ajuda na reflexão sonora sem nenhuma perda. É inesperado e desconcertante ver que a escolha pelo vidro, conhecido como um material de baixíssimo coeficiente de absorção sonora e por isso evitado em auditórios, por causa da reverberação produzida por seu elevado poder refletor, foi a cereja do bolo. A razão disso, claro, está no seu formato! Por isso a possibilidade de seu uso, visto que o difere dos vidros planos que internamente sempre representam um enorme problema. Já em outras salas a presença do vidro plano é aceitável, dadas as menores dimensões dos cômodos e porque outros elementos cumprem com a função de compensar os problemas acústicos. Nessas salas, utilizadas em sua maioria para ensaios, os vidros planos tornam-se interessantes porque são muito eficientes em repelir os sons provenientes do exterior.




                Nesse caso, o diferencial dos panos ondulados já começa no seu processo fabril. Para produzir chapas de alta qualidade o vidro precisa ser submetido à altas temperaturas para ganhar maleabilidade.  Para ser submetido à esse aquecimento que gira em torno dos 700 a 800 graus centígrados é colocado em uma fôrma corrugada altamente resistente ao calor e com uma geometria perfeita para que derreta. A exatidão do produto final depende diretamente da fôrma na qual a folha de vidro é submetida. As medidas do molde e da peça de vidro devem ser idênticas para garantir que se ajuste perfeitamente ao tempo em que o material ganhe flexibilidade e se assente. Depois de garantidas a forma e o tamanho desejados o material esfria gradualmente para evitar danos que um resfriamento desigual poderia causar. Quando o vidro atinge a temperatura ambiente ele responde por uma resistência extraordinária em virtude da sua nova geometria.



As próximas cinco fotografias são da belíssima sala VIP.





                Essa sala, não muito grande mas, com um generoso pé-direito e com uma janela que se volta para a vista e para a farta luz solar, é destinada à coletivas de imprensa, gravações de entrevistas e recepção à dignitários e personalidades do mundo político, social e cultural. Constitui-se no mais belo ambiente azulejado de todo o interior.

                


            Suas paredes restam completamente forradas com uma azulejaria que retrata  cenas campestres, pastorais e religiosas pintadas à mão. Esse tipo de cerâmica faz uma união entre a cultura local com a cultura holandesa já que em ambos os países a cerâmica azul e branca é muito difundida e está profundamente enraizada no imaginário coletivo. Dessa forma o arquiteto fez uso desse recurso plástico muito rico e atraente e viu a oportunidade de criar uma ponte entre seu país de origem e o país que o contratou.  




 


Da sala VIP, a aberta vista para o monumento central da praça arborizada é notável.




            O terraço do topo é voltado em direção ao centro dos jardins Mouzinho de Albuquerque e exibe um revestimento em xadrez simples nas cores preto e branco. Esses padrões, rigidamente geométricos aplicados até aqui, ajudam a perceber (ou pelo menos sentir) a singular relação com a geometria do prédio. No último andar ainda existem um restaurante e um telhado de vidro retrátil que se abre ao final de uma larga escadaria.





A forte perspectiva em direção à cidade velha. O Leão e a águia...

Na última fotografia abaixo o bem sem graça restaurante.



Uma iluminação zenital por entre uma teto pergolado 
é o único detalhe de valor nesse espaço.




                 Por fim é inegável que ninguém fica indiferente à Casa de Música do Porto, com sua presença marcante na paisagem da cidade, contrapondo o antigo e sugerindo o rumo para o futuro da arquitetura nas esferas local e regional. Seu alcance rompeu fronteiras e lançou um novo olhar sobre como pode ser uma casa de espetáculos. Mesmo mantendo a forma retangular de seu grande auditório o conceito do prédio segue fiel ao desejo do arquiteto e não exibe sua forma no exterior. Não há, portanto aquele volume proeminente que nos informa do que se trata seu interior. Também não existem as clássicas simetria e hierarquia, bem como, vários conceitos formais são diluídos ou reinterpretados, tais como ritmo, equilíbrio, repetição, conjunto e geometria.
              A arquitetura se desenrola a partir de uma figura geométrica que sugere forte unidade e sua estrutura baseia-se na ideia de um exoesqueleto com paredes de 40cm (quarenta centímetros)  de espessura somadas à um jogo de pilares que acompanham as inquietantes inclinações das suas diversas facetas (internas e externas) e alcançam seus pontos de conexão. O próprio corpo do auditório central faz parte desse sistema estrutural, cujas paredes podem chegar à um metro de espessura e trabalham em conjunto para dar estabilidade ao todo.
                  Com uma unidade muito forte e compacta, robusta e austera, repete no interior, de forma quase fractal, toda a filosofia externa. Suas plantas baixas são pouco elaboradas repetindo como detalhe projetual a inclinação de seus planos (tanto paredes como pisos) e reverenciando a estética dos contrastes entre o claro e o escuro, o aberto e o fechado, o rígido e o flexível sob uma paleta que também tira proveito do contraste entre as cores pálidas da engenharia com as densas cores da decoração. No exterior se exibe alternando paredes opacas com vãos cristalinos respondendo por uma essência estética muito limpa: pura como um cristal de rocha. Mesmo que predominem suas superfícies vedadas, completamente brancas, suas aberturas são generosas o bastante para permitir aos ambientes internos uma luz natural farta e vistas desimpedidas da vizinhança.
             De fato alcança o máximo destaque possível pois parece emanar luz em meio à urbes, se opondo de maneira clara e irrefutável ao tradicional conjunto arquitetônico que o envolve e a tudo o mais que veio antes. 
             Concluindo (entre o gostar e o não gostar), foi uma adição inestimável ao patrimônio histórico e artístico tanto da Cidade do Porto como de Portugal e indiscutivelmente servirá para promover um maior intercâmbio e um grande avanço da cultura portuguesa no âmbito do continente europeu.