sexta-feira, 14 de abril de 2023

Vitrais de Dom Bosco


 VITRAIS DO SANTUÁRIO SÃO JOÃO BOSCO

BRASÍLIA


                    Tudo se inicia com um profético sonho do padre católico italiano, Giovanni Melchior Bosco, pelo qual preconizou o surgimento de uma cidade entre os paralelos 15 e 20 que abrangem o planalto central brasileiro. Nesse sonho, como consta em sua biografia, ele teria percorrido o continente sul-americano de norte à sul, testemunhando suas culturas e suas riquezas; em determinado ponto do enorme registro com escrita enigmática e fantasiosa ele descreve o surgimento de uma cidade que coincide com a localização da Capital brasileiraApesar dos registros não especificarem o exato local dentro dessa faixa territorial não restam dúvidas, pelo teor dos relatos e magnitude das visões do padre, de que se trata de Brasília. O que reforça ainda mais a tese de que o sonho descreve o surgimento da Capital Federal, é a chegada dos primeiros Salesianos ao Brasil, em data pouco anterior ao fato.

                      É certo que para os mais céticos, toda essa história de sonho é tão fantasiosa como o próprio sonho em si. Ainda persistem dúvidas se realmente foi um sonho, uma premonição ou ainda uma visão. O fato é que a teoria difundida pela vertente religiosa dominante no país dos anos 50 foi incorporada para ajudar a justificar a mudança da sede do poder, corajosamente efetivada por Juscelino, para o longínquo e quente Goiás. Não obstante, a cidade se ergueu no Cerrado e fortificou a tese dos estudiosos da vida de Bosco. E, como não poderia ser diferente, nela foi erguida a Igreja modernista que possui um dos conjuntos de vitrais mais espetaculares da arquitetura moderna em território sul-americano. Se o italiano em seu sonho tivesse visto as imagens dos vitrais, teria certamente achado que não se tratava de nenhum plano terrestre e sim das portas do próprio Céu. 


                    Lindo projeto em concreto aparente que exibe a monocromia tão típica dos edifícios modernistas contemporâneos brasileiros da segunda metade do século vinte e que encanta o visitante com seu interior repleto de matizes de azuis e roxos. O volume rigidamente quadrado brinca com os vazados muito delgados da colunata que forma um dos mais belos conjuntos de arcos da Capital Federal. Acima deles uma larga platibanda esconde completamente o telhado, de estrutura metálica, limpando a linha de topo do prédio. Nem a cruz se atreve a romper essa linha conceitual tão forte, sendo introduzida numa lateral do primeiro pilar de maneira inteligente e muito rica plasticamente. 


                O problema desse edifício é que fica muito escondido na paisagem da cidade. Deveria ter mais destaque mas, mesmo assim, goza de grande notoriedade. Por trás da cruz o único arco que não recebe vitral. 



                Por dentro o mesmo desenho da fachada se repete, porém com um senso de conjunto ainda maior. As quatro fachadas se unem num espaço quadrangular de quarenta por quarenta metros, com seus lados quase idênticos. As delgadas colunas, com coroamento ogival, originam o jogo de plissados do magnífico rebaixamento do teto, que tapa a estrutura de sua cobertura, elaborado a partir de um sistema de treliças. Essas colunas alcançam cerca de dezesseis metros de altura e sustentam uma cinta de concreto armado que rodeia toda a estrutura. Tudo leva nossos olhares para o alto, tal qual uma catedral medieval. O efeito de confete dos vidros coloridos é bastante peculiar e de uma potência tremenda, contrastando com a rigidez da estrutura e com a frieza dos acabamentos da arquitetura antes deles. Certamente que um foi feito para o outro pois a estrutura é o que é por causa do complemento lúdico e etéreo das pastas de vidro, assim como, os vidros não teriam tanta importância se não tivessem encontrado um prédio que elegantemente deixa o protagonismo para as matizes celestes.


                A face plissada é feita com chapas de zinco com um jateamento de papel que ilude o observador imprimindo uma sensação de maior robustez do material. Esse tratamento diferente do papel também elimina suas linhas de junção, dando ao plano uma aparência de concreto aparente e uma impressão que fôra feito de uma só vez utilizando uma única forma. O efeito visual é mesmo de grande impacto e nos faz entender que se trata de uma estrutura extremamente pesada, quando na verdade é bastante leve. 

                    

                   As pequenas peças se amontoam aleatoriamente num frenético sobrepor de 12 tons de azul e pontos brilhantes de branco. Dependendo da hora e da estação do ano, por causa da inclinação da luz solar, o interior se enche de diferentes azuis e por isso reza a lenda, que uma noiva ao celebrar seu casamento na igreja, vai mudando de cores a medida em que as horas vão passando tendo sobre seu vestido os reflexos provenientes das tantas janelas. Ao final já com a iluminação artificial ela deixa o templo completamente branca. Se isso realmente acontece eu não saberia dizer mas, penso que seria uma interessante experiência ver isso na prática. 

                    Com ou sem a "camaleônica" nubente a igreja fala por si só e encanta qualquer um que nela entre.


                        Para marcar os quatro cantos o artista mudou a cor dos vidros, procurando um tom mais quente que dialogasse com o azul dominante, enfatizando as dobras da forma quadrada. Uma opção inteligente e de certo modo desconcertante porque quebra com a lógica da unidade que norteia todo o projeto. Penso que é um detalhe bonito que causa surpresa pois não se faz notar imediatamente. Há mesmo um espanto quando a pessoa descobre que na mudança dos planos o vitral torna-se púrpura. Nesses campos róseos não há o fechamento ogival do topo porque é justo onde o prédio tem suas quinas que separam os quatro conjuntos de colunatas das fachadas.


                      São mais de dois mil metros quadrados de vitrais confeccionados em São Paulo pelo artista belga Hubert Van Doorne a pedido do arquiteto brasileiro Cláudio Naves que assina o projeto. 


                        Conforme o ângulo o cruzeiro de cedro esculpido na cidade catarinense de Treze Tílias, parece fundir-se com uma das oitenta colunas da estrutura. Talhada em uma única peça de madeira por Gotfredo Traller tem oito metros de altura e mais de quatro metros de envergadura. Uma belíssima obra de arte elevada atrás do incrível altar confeccionado com um bloco de mármore rosa de desconcertantes dez toneladas.  


                    O grande lustre de cristal pende do exato centro do teto, evidenciando o formato de cubo e a rígida simetria da construção. Uma figura geométrica que lembra uma cruz, brota da união de todas as vigas que nascem nos pilares e rumam para cerne do conjunto. Com isso o teto subdivide-se em quatro idênticos quadrantes.  Esse maciço no rebaixo do teto serve de campo para a fixação dessa gigante luminária, com mais de três metros de altura, que por ter um desenho escalonado parece ter sido desenhada para esse local. São espantosas três toneladas de vidro distribuídas em quatro linhas de diferentes circunferências onde a maior alcança cinco metros de diâmetro.

                    O lustre, formado por um número superior à sete mil peças de vidro, desconsidera solenemente o altar e ilumina o meio da igreja conferindo maior importância aos fiéis, tal qual a Catedral de Brasília, porém de forma elegante e bem democrática. Ele chama a atenção às equidistâncias de cada membro da igreja, funcionando como se fosse o marco zero do ambiente. Visualmente o espaço se distribui de forma radial apesar do paralelismo dos eixos. 

                    O que chama a atenção para o altar é o modo como se distribui o lay-out do salão e um pequeno desnível do piso vencido por um largo lance de seis degraus. Das portas metálicas da fachada principal parte uma circulação que vai direto ao cruzeiro, coberta por uma longa passadeira vermelha que divide o templo entre direita e esquerda. De cada lado um grupo de mesmo número de bancos orientados para o altar nos dizem onde é a frente e onde são os fundos. Nada mais! Nada mais marca hierarquia. Nada mais marca setorização. Nada mais altera a ideia de lados iguais. 



Eu sentado no chão de mármore branco tendo os reflexos dos vidros azuis projetados sobre mim.
E abaixo as magníficas portas de bronze com assinatura de Gianfrancesco Cerri.


                        São ao todo doze portas duplas divididas em três conjuntos de quatro, resultando em 24 peças que contam parte da vida do padroeira da cidade. A única fachada que não ganha tais portas é obviamente a fachada onde se encontra o altar e a principal é a da fotografia acima. O único problema formal aí existente é que o alinhamento do corredor central, cuja passadeira vermelha aparece na fotografia, dá num pilar e não num vão de porta. Se fossem em número ímpar esse problema não existiria mas o número par foi imposto pela simetria da fachada composta por vinte colunas.

                        Bem, aí está mais um lugar a ser admirado. Apresento a quem não o conhece desejando que possa visitá-lo um dia. 


terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

Gran Teatro de Habana Alícia Alonso


                    Bem...  ...posso dizer que, em minha opinião, trata-se do prédio mais bonito de Havana. Muito da minha vontade de conhecer Cuba tem origem na curiosidade despertada por essa esplêndida fachada neobarroca. Lindíssima e de extrema elegância, ergue-se altiva no sítio mais importante do país de Fidel. Vizinha do célebre prédio do Capitólio Nacional, atreve-se a disputar com ele a coroa, o cetro e a faixa da beleza. Tanto banhada pela intensa luz equatoriana, durante os quentes dias da ilha, quanto ricamente iluminada durante a noite, suas frontarias são incomparáveis, portanto, não é de causar espanto que sua imagem desde a primeira vez que a vi nunca mais saiu da minha cabeça. Agora, depois de conhecê-lo pessoalmente, morará em minha memória enquanto dele me for possível recordar, porque de fato não decepcionou, revelando-se ainda mais belo do que nas imagens do meu passado.

 

                   O Grande Teatro de Havana Alícia Alonso é uma das principais instituições culturais do país, albergando o Balé Nacional de Cuba e destacando-se como uma das mais importante casas de ópera do mundo. Nele também encontramos um museu e várias salas para atividades culturais além da magnífica sala de espetáculos que recebe o nome de Garcia Lorca. 



                    Localizado estrategicamente no centro nevrálgico da política e no epicentro cultural e turístico da cidade, ocupa a totalidade do quarteirão em que se encontra e aproveita muito dessa vantagem urbanística explorando de maneira muito eficaz as linhas de sua marcante arquitetura. Suas quatro fachadas ostentam belíssimos detalhes arquitetônicos e três de suas quatro esquinas acabam com torres que balizam o movimento do frenético vai-e-vem de pessoas na região. Pode-se dizer que, apesar de não ter "fundos", seus exteriores ricamente decorados respeitam a hierarquia das calles que o rodeiam, tendo como sua fachada principal aquela que se volta para a avenida mais famosa da cidade conhecida por Paseo del Prado (que na verdade chama-se Paseo de Martí )
                    O terreno em que está implantado é completamente por ele tomado, não tendo nenhum afastamento em relação às calçadas. O lote é um retângulo com duas faces medindo cerca de 70 metros e duas outras medindo cerca de 60 metros. A fachada da fotografia acima mostra uma de suas elevações laterais que são as maiores. Como está voltada para os jardins do Capitólio Nacional acaba ganhando maior destaque. A perspectiva aqui é bem mais aberta e o trabalho dos pisos e canteiros lhe proporcionam a moldura perfeita. 

Perspectiva a partir das escadarias do Capitólio vendo parte de seus jardins.
A fachada principal é virada para a praça ao fundo conhecida por Parque Central.
                      
                      O atual prédio construído pelo clube social da comunidade galega de Cuba, e inaugurado no ano de 1914, incorporou o que era o antigo Teatro Tacón. Essa sala de espetáculos que fora mandada erguer na época em que Cuba ainda era colônia espanhola, pelo então Capitão-General Miguel Tacón e Rosique, ambiciosa personalidade que governou a ilha entre 1834 e 1838, foi a primeira na ilha. Nos tempos em que dominou a cena artística local trouxe para Havana uma elite de artistas que figuravam entre os mais afamados de sua época, dentre ele Sarah Bernard. Há quem diga que tornou-se a maior e mais luxuosa casa desse gênero nas américas e assim, colocou Cuba na rota dos grandes espetáculos. Consta também que nele foi feita a primeira apresentação de cinema no país. 

 
Imagem da fachada principal do antigo Teatro Tacón 
com seu estilo eclético de grande influência neoclássica a partir do Parque Central.
imagem retirada da internet.


                    A linha do topo da fachada principal é bem movimentada dando ao edifício um aspecto bem elaborado e formando um coroamento perfeito. Quase como uma guirlanda que liga as duas torres ela apresenta uma variação ondulada que sinaliza os pontos de importância e interesse. As prumadas das duas entradas sociais (uma para os salões da antiga associação galega e outra para a sala de espetáculos) ganham cada qual um pequeno frontão, enquanto o centro do edifício ganha um outro um pouquinho mais alto. Dessa forma a simetria é garantida e a hierarquia estabelecida. Sutis detalhes de organização espacial e orientação de uso. Sutil também é a divisão entre área pública e semipública da elevação marcada pela longa linha de balcões balaustrados. Nela Quatro conjuntos escultóricos de extrema beleza e grande significado separam e enquadram dois balcões menores, acima de dois toldos metálicos, que franqueiam e fortalecem as entradas dos pedestres (novamente marcando as áreas do clube e do teatro) e denotando qual dos andares é o mais importante. Já no último andar a série de janelas de arco pleno cria um fortíssimo senso de unidade já estabelecido pelo grupo de colunas duplas. Por fim as esquinas não perdem  


A nova fachada que cobre o Teatro Tacón a partir da esquina de sua extrema direita.
Essa com os quatro conjuntos de estátuas em mármore é a fachada principal.
Essa elevação é menor que as suas laterais e as torres ficam mais próximas entre si.


Parte da nova fachada principal do Alícia Alonso que cobre o Teatro Tacón (extrema direita)
 Na imagem vê-se dois dos quatro grupos alegóricos de autoria do italiano Giuseppe Mortti.


Executados em mármore proveniente de Carrara na Itália eles representam cada qual
 a beneficência, a educação, a música e por fim o teatro.




                 É em 1910 que o Tacón passa às mãos da Sociedade de Beneficência dos Naturais da Galícia que o coloca parcialmente abaixo, mantendo porém, sua grande sala de espetáculos intacta. Incorporada ao todo do projeto encomendado ao arquiteto de origem belga Paoul Belau continua até hoje com o brilho e aura de luxo e sofisticação que fizeram sua fama. Realmente é lindíssima e mantém-se no patamar das grandes salas de espetáculos da América Latina.
                         

acima a esquina entre o Passeio do Prado e os jardins do Capitólio.

                    O trabalho em cantaria das fachadas é sublime. Mesmo tendo o barroco como estilo, o edifício é contido em seu formato e em suas ornamentações, evitando em seu exterior os volumes curvos e as diferenças de cotas nas quatro fachadas, abusando da horizontalidade, ritmo e repetições de diversos elementos formais. O destaque volumétrico fica por conta das três torres oitavadas (que em razão de sua decoração parecem cilíndricas) de três tempos (torre em estágios) que marcam suas esquinas. Cada qual encimada por uma pequena cúpula que sustenta uma escultura de bronze. Esse recurso é muito eficaz e de uma força urbanística muito poderosa, pois torna o edifício reconhecível de vários pontos de sua circunvizinhança.  Deveriam ser quatro: caso não fosse mantido o volume do telhado do antigo Tacón com suas duas águas (ver maquete no fim desse post).


                        Nessas duas fotografias (anterior e posterior) mostro o arranque da escadaria principal, dita formal, na parte que dá acesso aos aposentos destinados ao antigo clube social galego. Com o aumento do conjunto arquitetônico ao redor da sala de espetáculos do Tacón, o arquiteto Belau manteve as duas entradas separadas e bem marcadas, projetando para seu novo cliente, uma nova e mais dramática área de circulação vertical com vários lances, vários pórticos, altíssimo pé-direito e linhas arredondadas que terminam numa cúpula de aço e vidro incolor depois de vencer três andares. Marcava dessa forma, pela hierarquia dos acessos definitivamente a importância da sociedade sobre a casa de espetáculos.
                Mais clara e arejada, ganha suntuosidade não somente pelo tamanho e forma mas, também pelos materiais de acabamento e pelo requinte e bom gosto de sua decoração.


                       Entre a entrada para o clube a entrada para o teatro existe essa comunicação por meio da porta francesa de vidro e madeira. Os dois grandes vestíbulos são separados de forma bem visível mas, podem ser usados simultaneamente dependendo do evento ou mesmo do número de pessoas. As colunas se repetem, assim como todos os acabamentos e elementos decorativos. 
   


                            A bailarina que dá nome ao centro cultural é homenageada no ponto de maior destaque do hall das escadas. A estátua em bronze de Alícia Alonso de autoria do reconhecido escultor cubano, José Ramón Villa Saberón, foi inaugurada em 02 de janeiro de 2018 pela própria Alícia. Considerada uma ativista ferrenha e defensora da política de Fidel, teve a honra de ver seu nome batizar o teatro e descerrou o pano que cobria sua imagem em plena dança, nas comemorações do quinquagésimo nono aniversário da Revolução Cubana no vão circular do primeiro patamar.


                       Alícia Alonso vem ser a mais famosa bailarina e coreógrafa cubana de todos os tempos. Considerada um expoente mundial na dança do século XX essa havanesa, por ser considerada quase perfeita, teve a honra de ganhar o simbólico mas, nem por isso menos importante, título de prima ballerina assoluta. Sendo a única latino-americana a ostentar tal homenagem. Trilhando uma carreira de fama e sucesso morreu em 2019 aos 98 anos de idade depois de estrear na Broadway nos anos quarenta do século passado, dançar e montar espetáculos em grandes palcos europeus e de dirigir a companhia de balé nacional cubana nos tempos pós revolução. 

Abaixo a estátua em bronze da bailarina na plenitude e elegância de sua 
attitude croisé devant.


                        O ponto focal do mosaico da rosácea, desenhado no piso de pequenas pecinhas vitrificadas, recepcionou a estátua de forma muito adequada. Interessante a maneira como o novo elemento foi introduzido sem causar desequilíbrio na composição original: algo raro no terceiro mundo. Isso mostra o nível cultural, o senso estético e a preocupação com o patrimônio existente em Cuba. Evidente que isso não acontece no seio de sua sociedade civil em razão das dificuldades e bloqueios financeiros vividos pelo povo a partir dos embargos capitaneados pelo imperialismo do norte. A cidade está quase que completamente em ruínas, mas mesmo assim o patrimônio ainda se conserva e mostra que com verba ainda serão capazes de trazer o velho brilho das encantadoras fachadas e seus sedutores interiores.


As curvas das escadarias trazem uma inesperada novidade à quem entra.
 Seu vão muito iluminado pela farta luz natural faz lembrar que estamos nos trópicos.
 O interior é fresco e silencioso.


                        As fartas paredes possuem grandes campos lisos pintados de tinta clara e os elementos decorativos pintados de branco quase não oferecem destaque. Tudo depende do jogo de luz e sombra. Talvez as paredes tenham tido mais destaque em outras épocas com cores mais fortes ou peças de decoração. Vale lembrar que os tempos espartanos em que a Nação foi submetida nas últimas sessenta décadas pode ter causado uma dilapidação no interior decorado. Tento imaginar esse prédio com sua mobília requintada, peças de decoração europeias e grandes tapetes vermelhos  nas escadarias recebendo a elite local para grandes bailes e recepções.  
  

                        Destaque para o brasão do Reino da Galícia localizado em baixo do balcão arredondado, formado pelo patamar principal, bem no meio de todo o arranjo arquitetônico. O escudo segue fielmente os ditames da arma galega com seu cálice dourado recepcionando uma hóstia rodeado por sete cruzes brancas em campo azul, encimado por uma coroa dourada.


                        Essa balaustrada curva com um trabalho de larga cimalha que converge para o brasão logo abaixo, (ou que partem do escudo para formar a base do semicírculo, dependendo se o observador sobe ou desce as escadas) forma uma espécie de parlatório, de púlpito. Muito interessante porque quem ali discursa pode se dirigir aos seus ouvintes em todas as direções. Orientado, entretanto, para a entrada formal e sobre o símbolo de suas origens, ganha uma força simbólica e uma hierarquia de extrema importância mas, privilegia o olhar àquele que entra no hall de baixo.  



                        O janelão arcado central diferencia-se dos demais e marca a perspectiva rumo ao púlpito, formando seu fundo em segundo plano. Todo o desenho é bem simétrico e percebesse  que as balaustradas das escadas também levam o olhar para o mesmo ponto.  Arquitetura poderosa usando dos sentimentos e da linguagem subliminar para interferir de maneira sutil sobre o comportamento humano. Cumpre com sua função mesmo que de forma imperceptível para a maioria. 


A fotografia acima de autoria de Bruno Dodolli mostra bem o conjunto todo.





                            Ao sair do grande hall das escadas, no terceiro e último andar, é nesse ambiente que o cidadão é recepcionado. O mármore domina o ambiente. Detalhe de cor somente nos pequenos medalhões sobre cada uma das portas externas. Alguns poucos espelhos e raras luminárias de bronze complementam a decoração. 



O ritmo das belíssimas aberturas arcadas domina o ambiente.
O brilho que entra pelos vidros e reflete no piso branco aquece a visão.


Eu posando no enorme salão de bailes. 
As colunas, ora agrupadas em duas ora solitárias, compõem um belo cenário. 


As portas carregam um certo ar de Art-Nouveau mas,
 a decoração ao seu redor são do mais belo barroco.


Acima um detalhe do riquíssimo trabalho de estuque no teto e paredes.
Nesse ponto do interior é possível reconstruir na imaginação o fausto de outrora.


Acima a interessante estrutura que servia como palco para os grupos musicais.
Como é suspensa a meio pé-direito volta-se para os dois lados do grande salão.
Abaixo apenas um pormenor que me encantou.


                    A seguir imagens do foyer da sala de espetáculos García Lorca, nitidamente menor e com uma escadaria mais acanhada que sua vizinha. É certo que o nível da cota do piso do antigo teatro parece mais baixo que o segundo andar de uso público do restante do clube, entretanto, seu teto poderia ser mais alto. Possivelmente a escada é nova em relação ao primeiro prédio, tanto que acompanha todos os acabamentos e elementos decorativos da versão barroca. Colunas em mármore rajado amarelo, pisos e balaustradas em mármore branco, detalhes em rico trabalho de gesso e luminárias fazendo conjunto com o todo. 


Ambas as escadas ficam voltadas para o Passeio do Prado com entrada direta.


O Hall de Entrada muito limpo e pobre em mobiliário não antecipa a maravilha que vem a seguir.
Essa falta de mobiliário e decoração seria um dos efeitos da revolução castrista?


Tecidos nobres, de um forte tom de vermelho, como nos mais tradicionais teatros.


Vista da plateia, frisas, camarotes e balcões.
Não consta que tenha tido no passado o balcão real. O certo é que não há vestígios dele.


Bem junto ao teto o belíssimo conjunto que enfeita a boca de cena com figuras humanas e guirlandas.
 No centro de tudo aparece em destaque uma concha: um dos símbolos da Galícia.
Abaixo da concha o Santo Graal e as sete cruzes, presentes no escudo e na bandeira do Reino da Galiza.


                    Curiosamente uma das características mais marcantes do estilo Barroco são seus tetos ricamente decorados com explosivas cores em cenas clássicas. A fartura de alegorias em torno de uma ação que conte uma fábula, uma passagem histórica ou bíblica e até mesmo aquelas referências mitológicas tão comuns nos afrescos ou mosaicos pelas igrejas, palácios, óperas e demais edifícios de relevante importância, mundo afora, não acontecem aqui. Sua única exceção é o teto do teatro. Mesmo exibindo uma bela imagem ainda é muito pobre para o estilo. Seria o calor dos trópicos? Opção e gosto do arquiteto? Verba? Fica a dúvida...


o lustre apagado no início de minha visita e já aceso perto da noite.


                    O lustre de três círculos concêntricos de lamparinas opalinadas substitui o afamado candeeiro do Tacón. Reza a lenda que era uma das três coisas a serem vistas na Havana Espanhola. Infelizmente três anos antes de ser vendido aos galegos o pendente proveniente de Paris foi destruído por uma queda. De tão pesado o teto colapsou dando fim ao afamado objeto. Infelizmente o atual não deve nem fazer sombra ao antigo visto que apesar do tamanho nada mais tem de especial. 


Acima uma vista noturna com a nova iluminação instalada depois da última reforma.
Abaixo a maquete do edifício exposta no interior da sede.


                       Para termos a correta noção da importância de sua localização a imagem abaixo mostra o Capitólio Nacional visto de uma das diversas portas-balcão do grande salão de bailes do Clube Social Galego. Toda a lateral do prédio, ocupada pelas salas usadas pelos então associados, volta-se para o maior ícone edificado da cidade e do país caribenho. Na maquete essa vista corresponde à terceira linha da  segunda coluna de aberturas da fachada.



A bandeira tremulando sobre a entrada do edifício que hoje sedia as Academia e a Biblioteca Nacional de Ciências. O belíssimo edifício já foi considerado a terceira maior casa parlamentar do mundo.


                           Recentemente restaurado para as comemorações dos 500 (quinhentos) anos de Havana, o edifício do Capitólio teve sua bela cúpula de gomos dourados restaurada e renovada. Suas paredes e escadarias de mármore voltaram a exibir o alvo e brilhante branco de outrora, seus bronzes e gradis o negro original e seus vidros limpos e completos. Finalmente seus ajardinamento e entorno foram refeitos à luz do que foram um dia. Tudo para limpar, renovar e reconfigurar o mais belo logradouro de toda a Capital Cubana que marca seu ponto zero. Baita cartão postal! 
                   Com muita pompa e circunstância vieram para sua reabertura o casal de monarcas Bourbon da Espanha, Felipe VI e Letícia, com toda sua comitiva. 

                            Inspirado no Capitólio de Washington DC e a exemplo de quase todos os prédios do poder central dos 50 (cinquenta) estados daquela federação, exibe um forte estilo neoclássico (aquele que copia todos os traços mas desconsidera todas as proporções das estruturas dos antigos gregos), sempre  em reluzente e luxuoso revestimento de mármore e muitos detalhes em forja metálica preta ou dourada. Para o orgulho do povo cubano e até certo ponto com um saborzinho de vingança, sua versão ilhoa é ainda maior que sua fonte de inspiração, sendo um mísero metro mais largo e outro mísero metro mais profundo. Maior também é a altura final de suas lanterna e ponteira, que vencem o prédio sede do legislativo da "inimiga" nação imperialista. 

                            Manteve-se por muitos anos como a estrutura mais alta de Havana, perdendo seu posto na década de 50 (cinquenta) para os 142m. (cento e quarenta e dois metros) de modernidade do Memorial José Martí, erguido na porção norte da Plaza de La Revolución (mostrado na foto abaixo). Essa praça que faz parte da ampliação urbana proposta para a cidade nos anos dourados é um enorme espaço aberto que se converteu no palco de todas as manifestações e festejos públicos promovidos pela mão ditatorial de Castro.
                           
 
O Monumento à Martí, de gosto bem duvidoso, com as linhas impostas por Fulgêncio Batista, ainda que 
adaptadas do original projeto do arquiteto Luis Henrique Varela.

                    Para concluir o post é interessante analisar e contextualizar os três estilos aqui mostrados. Enquanto o arquiteto contratado pelo clube de origem espanhola (portanto um cliente privado e burguês) foi buscar um estilo ainda muito utilizado na Europa continental, trazendo uma leitura mais leve do barroco com toques, do então em voga, art-nouveau no início dos anos de 1920, os dirigentes políticos vão beber nas fontes dos Estados Unidos da América e importam o neoclássico dos edifícios públicos daquele país. Por último o ditador Fulgêncio Batista, nos finais da década de cinquenta, impõe sua escolha sobre um concurso público e opta pela obra modernista de um amigo pessoal em detrimento do real vencedor que por coincidência ou não, vinha com um projeto também inspirado no neoclássico resgatado pelos estadunidenses

                              Então podemos entender para qual lado pendia o gosto de cada cliente: os membros da rica associação, com origem ibérica, claramente ansiavam por uma obra de raiz eminentemente europeia em sintonia com o que acontecia além mar. Paris e Madri ainda eram os grandes influenciadores de uma sociedade endinheirada com fortes conexões com o Velho Mundo. O ecletismo passava a dar lugar ao modernismo (art-nouveau) mas ainda era cedo para perder sua força. O neobarroco parecia ser um diferencial para agregar valor e fazer uma ponte com a época de ouro do teatro, ópera e música daquele continente. Pronto: achado o estilo ideal para diferenciar-se do restante estabelecido em Havana e ao mesmo tempo recorrer ao simbolismo adequado.  Já o estilo do Capitólio denota a pesada influência do país de Herbert Hoover sobre as economia, política e cultura estatais cubanas. Nessa época a terra do presidente Gerardo Machado já era considerada o parque de diversões dos E.U.A. com todo o tipo de corrupção típica do submundo social e com uma balança comercial que pendendo sempre para o país do norte, tornava a ilha cada vez mais dependente e submissa aos ditames por lá impostos. Era o playground  de luxo da América. Cuba fervilhava de prazer, jogos e festas e as elites em geral se beneficiavam disso. Nada mais óbvio que o estilo escolhido para o principal prédio da terra do bolero, fosse uma cópia dos prédios do poder yankee bem ao gosto de George Washington de quase duzentos anos antes.
                          Por último é fácil entender porque o monumento ao herói nacional foi feito como uma deselegante e áspera torre em forma de estrela que a medida que se eleva encolhe de forma piramidal. O estilo vencedor era mais uma cópia dos prédios do The National Mall em Washington, mais especificamente do Lincoln Memorial porém, o ditador na ocasião refutou a escolha e impôs um projeto de gosto pessoal. Na verdade essa proposta (que tinha sido classificada em terceiro lugar) acabou sendo adaptada à alguns caprichos da opinião pública em razão de um elevado clamor social. Não importando o fato de Fulgêncio ouvir seu povo, sua vontade imperou e o estilo quase abrutalhado com ares de art-decô foi introduzido em Cuba para marcar uma evolução nas artes e uma conexão ao que se produzia na América Latina, em especial nos Brasil, México e Venezuela. Este estilo que refutava as influências dos Estados Unidos acabaria por ser bem aceito pelo movimento revolucionário anos depois. Por isso essa "trapizonga" se ergue no principal pódio público de Cuba.