segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Isabella Stewart Gardner Museum

               Isabella Stewart Gardner foi mais uma daquelas figuras milionárias norte-americanas que legou ao Estado uma suntuosa coleção de artes. Tida como uma das mais proeminentes figuras femininas da filantropia em todos os tempos, destinou seu tempo e dinheiro para reunir sob o mesmo teto uma invejável coleção que inclui desenhos, pinturas, mobiliário, artefatos de várias culturas antigas, tapeçarias, vidros e muitos outros itens de inestimável valor. Em seu testamento ordenou que nada fosse mudado no museu, que deveria obrigatoriamente respeitar a ordem e a distribuição das peças feita pessoalmente. Legou, ao povo de sua cidade e país, além do conjunto que originou o museu, uma alta soma em dinheiro para servir de base à manutenção desse patrimônio, além de destinar altas quantias para ajudar no combate e prevenção aos maus tratos contra crianças e animais.  
                  

Isabella em retrato assinado por John Singer Sargent

               Muito culta, aproximou-se de intelectuais e artistas e passou a patrociná-los. Viajou o mundo todo em busca de objetos e percorreu grande parte da Europa, Ásia e do Oriente Médio coletando peças das mais diferentes origens e estilos. Depois de viúva e já detentora de uma considerável quantidade de obras de altíssimo valor, mandou levantar um casarão em estilo medieval tardio italiano, somente para expor seu vasto acervo. Para isso contratou Willard T. Sears (profissional que transitava entre os estilos neo-gótico e neo-renascentista) que aceitou a encomenda e desenvolveu o projeto sob a ótica e as autoritárias exigências da cliente. Gardner acompanhou pessoalmente todos os estágios da obra para garantir que o estilo adotado pelo partido arquitetônico refletisse sua paixão pela cidade de Veneza: seu destino favorito fora da América.


               A ilustração anterior mostra uma vista do casarão de quatro andares construído especialmente para receber a coleção Gardner. Consta que esse prédio foi o primeiro a ter um vão central coberto por vidros fixos em uma estrutura de aço nos Estados Unidos da América. É na verdade um prédio moderno com estrutura de betão armado e lajes de concreto revestidas com pisos e outros materiais desenvolvidos especialmente para seus interiores. Vários fragmentos e peças trazidas da Europa central foram adicionadas ao corpo do edifício para garantir a atmosfera pretendida.
             No cartão postal aparece a cumeeira em vidro que representa exatamente o vão central coberto. Por fora o prédio não é bonito e nem mesmo atraente, exibindo uma fachada muito simples, monótona e bruta. De forma avessa, seu interior já é bastante dramático e variado, o que o torna muito interessante. Quanto à beleza, bem, daí é uma questão pessoal.


               Na virada do século a administração do museu chegou à conclusão que suas instalações já não comportavam mais a crescente demanda e procura por parte da população citadina. Várias atividades que vinham sendo oferecidas à comunidade mereciam novos e mais modernos espaços. O museu que ao longo dos anos ampliara sua relação com a cidade, precisava de uma estrutura capaz de levar a cabo toda a agenda cultural imposta. Para isso a velha e abarrotada casa de Isabella não dispunha de áreas livres o suficiente.
                   Em 2004 o arquiteto italiano (já premiado pelo Pritzker) Renzo Piano foi contratado para projetar as novas e moderníssimas alas do ISG Museum. Depois de muitos anos gastos entre projetos e análises o resultado foi o bacana prédio abaixo:


               Com um custo final que superou os cem milhões de dólares o prédio de Piano é uma ode ao bom gosto. Com muito vidro e metal revestindo seus volumes bem ordenados e bem proporcionados, dialoga com a casa ao lado de forma a garantir uma independência de linhas a ambos. A altura final de sua cobertura e suas linhas retas respeitam as proporções e escala da casa primeira.
                   A cobertura com pé-direito generoso, locada à frente da fachada que ganha o mural decorativo, é o corpo da bilheteria. Muito bem colocada, atrai com eficiência o visitante que reconhece nessa área a porta principal do museu. Parece besteira apontar para esse tipo de coisa, mas não são poucos os novos projetos que não marcam de maneira clara os seus acessos, impingindo ao pobre visitante o dissabor de dar voltas e mais voltas até achar por onde entrar! (risos)
                  O painel colocado sobre a parte vedada do corpo mais alto do museu (aqui com uma arte em tons de rosa) é outro detalhe que adorei. Muito bem colocado. Quando expostos os cartazes das mostras ou qualquer outro acontecimento da programação cultural, o painel cumpre com sua função e não atrapalha a fachada como acontece em outros museus ao redor do mundo que desfraldam seus enormes banners e geralmente tapam a beleza de suas frontarias. Quando não está acontecendo nenhuma atividade o painel vira uma obra de arte que embeleza e enche de cor a área.  


               Adoro a diferença de cores que existe entre as várias partes componentes do revestimento do prédio. As placas exibem uma variada palheta de verdes que cria um dinâmico mosaico, que em dias de muito sol servem de tela para o desenho das sombras projetadas  sobre a fachada. 


               As escadas abertas à paisagem, além de muito bonitas, fazem uma clara referência às típicas escadas de incêndio dos grandes centros urbanos norte-americanos. As portas de acesso para cada um dos andares são bem grandes e rodeadas por vitrôs que transformam os patamares em balcões voltados para a vista da cidade.

     
                Gosto muito dos vigotes de metal dos quais partem cabos que ajudam a estruturar a pele de fora da fachada. Eles ainda conferem muito movimento ao que seria um simples cubo esverdeado. Aliás, o tom verde claro dos vidros e o cinza dos elementos metálicos me agradam totalmente.
               


               A perspectiva do prédio é muito enfática! A altura da parede inclinada parece ainda maior do que realmente é. Isso se deve porque a linha da platibanda se afasta do observador e se eleva a uma altura suficiente para tapar os edifícios mais altos dos quarteirões vizinhos.


               A linha verde que se vê no alto entre as duas últimas divisões do caixilho é na verdade um toldo retrátil subdividido por cada janela. Como nesse dia o tempo estava ótimo, com temperatura de meia-estação, os toldos individuais estavam todos recolhidos. Quando abertos cobrem os panos de vidro e exibem uma coloração bem forte. O verde muito cítrico dá um toque de cor à fachada que agrada.



               Além de criar um belo detalhamento de fachada o tratamento dado à suas paredes (alternando seus vidros com todos esses elementos metálicos) confere um efeito cênico extraordinário. Todas essas grelhas, grades, brises, pérgulas, cabos, escadas dão um aspecto moderno ao prédio que tira proveito dessa composição metálica (tanto interna como externa) para garantir uma higiene habitacional de elevado padrão. Todos esses componentes arquitetônicos guardam também uma função que vai além do efeito estético conferindo uma versatilidade ímpar para garantir um bom equilíbrio térmico interno. A luz natural que entra é bem controlada, assim como a circulação de ar cruzada. Em uma cidade com enormes diferenças de temperatura, um edifício que seja capaz de controlar sua temperatura interna representa uma economia fantástica de energia, pois dispensa o controle artificial de temperatura.


               A versatilidade dos vários módulos que compõem a fachada, se revela muito inteligente e eficaz, garantindo uma boa relação entre o espaço construído interno e o mundo à sua volta. O uso dos recursos naturais para garantir um bom microclima interno é a tônica aqui, sem contudo deixar de entender a total ou parcial permeabilidade visual das partes de convívio, visitação, administração e serviços.





               A estufa vista da sala da bilheteria. Ela ocupa uma área bastante grande da fachada que tem em sua parede inclinada seu maior atrativo. Linda por dentro e por fora serve não somente como fornecedora de plantas para os jardins do museu (um luxo!) como barreira visual entre o exterior e o interior da parte de serviços do prédio. É de um apelo visual fantástico e eleva a porção menos valorizada do conjunto ao mesmo patamar de requinte e sofisticação encontrado em suas áreas mais importantes.


               Ocupando quase todo o quarteirão os dois prédios do museu dominam três de suas quatro esquinas. A casa antiga é voltada para uma das mais importantes ruas do bairro, enquanto que a estrutura mais nova tem sua fachada principal  voltada inteiramente para a praça à sua frente. A casa de 1903 está marcada com a letra A. O edifício de 2012 está dividido entre as letras B e C, onde B é reservado às novas instalações do museu e C é a parte da estufa com cômodos para serviços.
  1. Jardim da casa projetada por Sears;
  2. Jardim do prédio de Piano;
  3. Entrada do museu pela nova ala;
  4. Lounge;
  5. Loja;
  6. Cafeteria;
  7. Restaurante;
  8. Vão central da casa em linhas venezianas e coberto com estrutura de aço e vidros.
               A letra B está locada no hall de distribuição vertical em cima dos elevadores. Nesse hall está a grande escadaria que se alinha com o corredor que dá acesso à estrutura de época onde está exposto todo o acervo. Esse acesso é dado por meio de um corredor de vidro que no desenho aparece tampado por dois maciços de vegetação. A circulação principal é iniciada no número 3 (logo após a bilheteria que fica ao lado da estufa), passa pelo B a vira em direção ao casarão, acabando no 8. Depois o visitante passa a percorrer todos os aposentos da casa principal, ganhando três dos quatro andares existentes e depois descendo para a nova estrutura, seguindo uma ordem imposta pelo próprio museu que pode ser alterada a qualquer tempo.


Antes um desenho da fachada do conjunto de novas alas ao lado do antigo casarão.


               Acima a feia fachada do museu de Gardner. A coluna de chaminés que se bifurca é pavorosa! Suas esquadrias estão mais para um prédio de indústria fabril do que para um palácio veneziano e a porta principal é muito acanhada. Quem vê por fora imagina que tantas e tão altas janelas propiciam ambientes claros, arejados e aquecidos pela luz solar ao interior, no entanto o que acontece é exatamente o inverso. Os ambientes são muito escuros e frios. Para quem circula por entre seus mais diversos cômodos, a vista das praças ao redor é praticamente inexistente e o contato entre interior e exterior é quase nulo. Isso faz voltar todas as atenções para o grande átrio interno.


                  O largo e alto vão central coberto, reproduz um palazzo gótico italiano. Possivelmente inspirado no Palácio Barbaro, um dos mais belos do Grande Canal de Veneza.
              No centro desse impressionante jardim interno foi colocado um mosaico romano que é visto de qualquer ponto da loggia térrea e de todas as janelas dos andares superiores. Nele estão também dispostas muitas estátuas e fragmentos da era clássica. Suas paredes ganharam um tratamento de estuque veneziano que faz um belo fundo à vegetação luxuriante.
              O enorme conjunto de colunas originais, distribuídas de forma ordenada e espelhada nos quatro andares (que vieram de diferentes prédios medievais europeus) faz o menos informado visitante acreditar que a exemplo de outras façanhas do emergente país, se trata de uma edificação de época trazida inteiramente da Itália. Mas não! Os artefatos e as peças isoladas são mesmo frutos do mercado de artes do final do século dezenove e início do vinte, mas o prédio tem mesmo DNA americano. Outrossim, é a única parte de real beleza de toda a construção. Ainda bem que a maioria dos feios e sufocantes interiores se abrem para esse iluminado e fresco vão. Pelo prédio em si não se tem muita vontade de continuar a visita mas, sim, ficar virado e debruçado em uma das balaustradas trazidas do velho continente.


               Apesar de aclamado como um espetacular museu de artes e como um dos principais de Boston sua parte antiga não me impressionou em nada. Talvez (por expressa vontade de sua doadora) pelo fato das peças terem sido mantidas exatamente no mesmo local onde foram por Isabella dispostas, ao tempo de sua inauguração e durante sua vida. O museu é muito problemático e ruim de ser visitado. Ruim é pouco: é péssimo! Atrapalhado, agoniado, escuro, mal orientado e tudo o mais de ruim que pode ser atribuído a um museu. Uma pena pois tem obras magníficas como um auto retrato de Rembrandt, ainda jovem, muito mal iluminado.  


               A casa é muito escura e muito soturna, tal qual um palácio de 600 anos atrás, encravado entre os canais da italiana cidade dos Doges. Mas, rodeada pelas praças de Boston torna-se perdida e sem graça, ainda que seja a realização de um sonho da classe alta yankee. O gosto da antiga dona, pode não encontrar eco nas novas gerações abençoadas por toda a parafernália moderna, mas certamente causou frisson no ceio dos barões, políticos e acadêmicos da mais aristocrática cidade norte-americana.

               Atualmente é quase um martírio tentar entender o que está pendurado em suas paredes. A iluminação é péssima e a aleatória forma como as obras se encontram não é nada suavizada com recursos simples ao alcance da curadoria. Nada de placas nem letreiros. O material impresso é pobre e deficiente e a comunicação visual antiquada ou nula. O visitante fica refém daqueles infernais aparelhos de áudio ou de disputadíssimos displays plastificados contendo um desenho do lay-out de cada uma das paredes com suas respectivas legendas! Um inferno. Desanimador. Depois da quarta sala o desinteresse é geral. 


             Os quadros que aparecem na fotografia anterior, apenas com suas molduras, servem de testemunho ao maior roubo de artes que ocorreu em um museu privado em todos os tempos. Em 1990 foram levadas inúmeras relíquias como a Tempestade no Mar da Galiléia de Rembrandt, única paisagem marinha conhecida do famoso holandês. Por causa das determinações do testamento as molduras não podem sair de onde estão e permanecem à espera da volta de seus valiosíssimos recheios! Foram-se várias obras de Rembrandt, um Veermer, um Manet, dentre outros, resultando em um prejuízo de cerca de U$ 500 Mi. 


               Exemplo de um acervo fantástico que não explora nem um décimo de seu potencial. Há quem diga que suas instalações são agradáveis como o interior de uma casa senhorial e que reproduz à perfeição como a milionária vivia em seus domínios domésticos. Descabida a comparação visto que o prédio foi criado como um museu e que os aposentos privativos de Isabella ficam no quarto e último andar, inacessível ao público. Seja como for, infelizmente ainda é um museu para ir uma vez na vida e nunca mais voltar.


Outro retrato de Isabella Stewart Gardner, também exposto permanentemente. Esse pintado por Anders Zorn.


  Diferente do conteúdo que exibe, a velha casa que sedia o museu é muito feia mesmo:

1) Seus pisos são irregulares e descontinuados, seguindo o preciosismo da reprodução de época;
2) Suas paredes ganham tons e texturas de gosto duvidoso ao exemplo das piores da antiga Itália;
3) Sua iluminação é precária e a circulação de ar deficiente (talvez motivadas pelo rigoroso inverno da região);
4) Suas obras de arte se acumulam de forma desordenada e mal exposta (talvez pela enormidade do acervo);


          Já a parte moderna, edificada imediatamente ao lado, é tudo de bom! Linda e atemporal, clara e arejada, moderna e eficientemente confortável, serve de real contraponto à estrutura levantada pela rica Isabella. Não poderia ser diferente: muito dinheiro gasto com alta tecnologia e design de categoria...


Muito interessante o contraste entre as duas edificações, evidenciado nesta vista da casa de época a partir do interior do moderníssimo anexo de Piano. 


A proliferação de metal e vidros cria um prédio com muitos reflexos e golpes visuais.
Iluminação sofisticada e de efeito...



          É importantíssimo salientar que minhas opiniões (tantos as positivas com as negativas) podem não refletir a opinião que prevalece, portanto, a visita ao museu deve ser considerada indispensável para quem vai para Boston. A despeito de tudo que se diga, uma certeza existe: seu acervo é mesmo imperdível e incalculável e a gratidão à filantropia de sua criadora é imensa!
         Desejo que todas as obras de arte roubadas de seus interiores sejam, um dia, reintegradas ao conjunto deixado por Gardner e possam voltar a fazer parte da exposição permanente.

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